Émile-Auguste Chartier (Alain) (1868-1951) |
Por Émile-Auguste Chartier (Alain)
Algumas pessoas jogavam Letras, um passatempo conhecido; trata-se de formar palavras com letras esparsas. Essas combinações excitam prodigiosamente a atenção. A grande facilidade dos pequenos problemas de três ou quatro letras leva o espírito a um trabalho muito fatigante; bela ocasião para o ensino dos termos técnicos e da ortografia. Assim, pensava eu, é fácil prender a atenção da criança; façamos para ela uma ponte que vá de seus jogos até às nossas ciências; e que ela se ponha a trabalhar sem saber que trabalha. Depois, durante toda a sua vida, o estudo será um repouso e uma alegria, por causa desse hábito da infância, enquanto que, para a maioria, a lembrança dos estudos é como um suplício. Seguia assim essa ideia encantadora em companhia de Montaigne¹. Mas a sombra de Hegel falou mais alto².
A criança, disse essa Sombra, não
gosta de suas alegrias de criança tanto quanto você pensa. Em sua vida
imediata, sim, ela é totalmente criança, e contente por ser criança, mas para
você, não para ela mesma. Pela reflexão, logo rejeita seu estado de criança:
quer tornar-se homem. E nisso é mais séria do eu você, menos criança que você,
que se faz de criança. Porque o estado de homem é belo para quem a ele chega
com todas as forças da infância. O sono é um prazer de animal, sempre cinzento
e algo sombrio, mas nele logo nos perdemos; escorregamos para ele; mergulhamos,
sem qualquer retorno a nós mesmos. E isso é o melhor. É todo o prazer da planta
e do animal, certamente; é todo o prazer do ser que nada supera, que não se
ergue acima de si mesmo. Mas embalar não é instruir.
Ao contrário, disse essa grande
Sombra, desejo que exista como que um fosso entre a brincadeira e o estudo.
Quê! Aprender a ler e a escrever por meio de jogo de letras? A contar com
avelãs, em atividade de símio? Antes temeria que estes grandes segredos não
parecessem bastante difíceis, nem bastante majestosos. O idiota se diverte com
tudo; ele rói as nossas belas ideias, rumina, zomba. Tenho medo desse selvagem
disfarçado de homem. Um pouco de pintura, brincando; algumas notas de música,
repentinamente interrompidas, sem medida, sem a seriedade da coisa. Uma conferência
sobre o rádio, ou sobre a telegrafia sem fio ou os raios X; a sombra de um
esqueleto, uma anedota. Um pouco de dança; um pouco de política, um pouco de
religião. O Incognoscível em seios palavras. “Eu sei, compreendi”, diz o
idiota. Mais lhe conviria o tédio. Talvez ele o superasse. Mas nesse jogo de
letras ele permanece assentado e muito ocupado; sério ao seu modo, e contente
consigo mesmo.
Prefiro, disse a Sombra, prefiro
na criança este escrúpulo de homem, quando vê que é hora de estudo e que desejamos
ainda fazê-la rir. Quero que ela se sinta bem ignorante, bem longe, bem abaixo,
bem criancinha por si mesma; que se apoie na ordem humana; que se forme no
respeito, porque somos grandes pelo respeito, e não pequenos. Que conceba uma
grande ambição, uma grande resolução, por uma grande humildade. Que se
discipline e se faça; sempre com esforço, sempre em ascensão. Aprender
dificilmente as coisas fáceis. Depois, saltar e gritar, segundo a natureza
animal. Progresso, disse a Sombra, por oposições e negações.
¹Alusão à concepção de Michel de Montaigne (1533-1592) expressa nos Ensaios (1582), Liv. I, cap.XXVI, de que o aprendizado deve ser ameno à criança.
¹Alusão à concepção de Michel de Montaigne (1533-1592) expressa nos Ensaios (1582), Liv. I, cap.XXVI, de que o aprendizado deve ser ameno à criança.
(
² Referência geral à concepção de Hegel (1770-1831) de que a criança não se
compraz com a sua própria maneira de ser. Aspira, natural e necessariamente, a
ser homem, que constitui a realização da ideia.