quarta-feira, 27 de junho de 2012

O Espectro



(A Ivan Junqueira)
 
Não há como agarrar-te à natureza
quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa
 
à luz da labareda que a desfaz;
morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.
 
Tudo talvez ressurja mais além,
mas ao abutre, albatroz, águia ou condor
o vôo acaba por pesar e tem
 
que perder altitude no esplendor:
dos páramos à esteira de uma nave
estende-se a amplidão, mas sem repor
 
fôlego a um coração até que a ave
recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era tão doce! Tão suave
 
levitou-se e mais nada lembra o vôo...
Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante
do que caiu como do que voltou,
 
com uma equanimidade impressionante.
E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante
 
fingindo-se impassível se algum dia
ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia
 
surgiu-me um belo dia, e veio a mim
assim que eu consegui levar a sério
os canteiros de Kant num jardim
 
à beira Tâmisa, ante um cemitério...
Lá estivera eu de mão no queixo
a espanar as lombadas do mistério,

seguindo a lógica ao seu belo fecho:
afinal, se a equação mais arbitrária
conseguiria amarrar a terra a um eixo,
 
qualquer cogitação imaginária
não seria nem mais nem menos frágil;
divagações da hora solitária,
 
arabescos da mente, sempre ágil
ao fazer de um trapézio o seu lugar.
Pois foi então que, assim como um presságio
 
obriga a respirar mais devagar,
mas faz bater mais forte o coração, 
eu primeiro senti aquele olhar

Bruno Tolentino



Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino (Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1940 — São Paulo, 27 de junho de 2007) foi um poeta brasileiro.

Nascido numa tradicional e rica família carioca, conviveu desde criança com intelectuais e escritores, entre eles Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Primo do crítico literário brasileiro Antonio Candido e da crítica teatral Bárbara Heliodora, seu avô foi conselheiro do Império e fundador da Caixa Econômica Federal. Nesse ambiente familiar, foi instruído em inglês e francês ao mesmo tempo de sua alfabetização no português.

Publica em 1963 seu primeiro livro, "Anulação e outros reparos". Com o advento do golpe militar de 1964, muda-se para a Europa a convite do poeta Giuseppe Ungaretti, onde viverá 30 anos, tendo residido na Itália, Bélgica, Inglaterra e França. Foi professor de literatura nas universidades de Oxford, Essex e Bristol e tradutor-intérprete junto à Comunidade Econômica Européia. Publica em 1971, em língua francesa, o livro "Le vrai le vain" e, em 1979, em língua inglesa, "About the Hunt", ambos bem recebidos pela crítica literária européia. Sucedeu o poeta e amigo W. H. Auden na direção da revista literária Oxford Poetry Now.

Em 1987, sob a acusação de porte de drogas, é condenado a 11 anos de prisão. Cumpriu apenas pouco mais de um ano da pena, em Dartmoor, no Reino Unido. "Adorei e procurei tirar o máximo de proveito", foi o que Bruno declarou sobre a experiência, numa entrevista em agosto de 2006. Aos companheiros de prisão, organizou aulas de alfabetização e de literatura, estas últimas nomeadas de "Seminars of Drama and Literature", que, conforme posteriormente relatado por Bruno, "em cujas sessões avançadas chegaram a comparecer psicanalistas de renome, ao lado de personalidades do mundo das Letras tais como Harold Carpenter, o estudioso e biógrafo de Pound e Auden, o dramaturgo Harold Pinter, ou Lady Antonia Fraser".

Tolentino retorna ao Brasil em 1993, publicando, no ano seguinte, o livro "As horas de Katharina", escrito durante o período de 22 anos (1971-1993), ganhando com ele o Prêmio Jabuti de melhor livro de poesia. Em 1995, publica "Os Sapos de Ontem", uma coletânea de textos, artigos e poemas originados de uma polêmica intelectual com os irmãos Haroldo de Campos e Augusto de Campos, que nesse livro serão os principais alvos de sua "língua ferina entortada pelo vício da ironia", frase que Bruno usou durante uma entrevista em que lhe foi pedido "um perfil abrangente de si mesmo". Ainda em 1995 publica "Os Deuses de Hoje", e, em 1996, "A balada do cárcere", livro nascido da experiência de sua prisão pouco menos de dez anos antes. Ainda nesse ano, foi publicada uma polêmica entrevista com Bruno para a Revista Veja[4], onde o poeta critica, entre outras coisas, a atual situação intelectual do Brasil, o Concretismo, a concepção e aceitação da letra de música enquanto poesia e a elevação de músicos populares à posição do intelectual.

Bruno irá publicar em 2002 e 2006, respectivamente, os livros que considerou como a culminação de sua obra poética: "O mundo como Idéia", escrito durante 40 anos (1959-1999), e "A imitação do amanhecer", escrito durante 25 anos (1979-2004). Ambos lhe renderam o Prêmio Jabuti, prêmio já alcançado em 1993 com "As horas de Katharina", tornando-o assim o único escritor a ganhar três edições do prêmio. Bruno também recebeu, por "O mundo como Idéia", o Prêmio Senador José Ermírio de Morais, prêmio nunca antes dado a um escritor, em sessão da Academia Brasileira de Letras, com saudação proferida pelo acadêmico, filósofo, poeta e teórico do Direito Miguel Reale, seu amigo.

Tolentino, que tinha Aids e já havia superado um câncer, esteve internado durante um mês na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde veio a falecer, aos 66 anos de idade, vitimado por uma falência múltipla de órgãos, em 27 de junho de 2007.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

A paranoia bullying



Entro em sala de aula várias vezes na semana. Daí vem muito do que penso acerca dos modismos perniciosos que assolam o mundo da educação.

E daí também vem o fato de que, apesar de ser pessimista (nada tem de chique no pessimismo, apenas para quem não o conhece por dentro e o confunde com um estilo melancólico de se vestir), não desisto da vida e vou morar no bosque de "Walden" (ou algo semelhante), como fez o filósofo americano Thoreau no século 19.

Hoje vou comentar um caso específico de moda que em breve provavelmente vai destruir qualquer liberdade e espontaneidade na sala de aula: a "paranoia bullying".

Se atentarmos para o que o Ministério Público prepara como controle da vida escolar "interna", veremos, mais uma vez, a face do totalitarismo via hiperatividade do poder jurídico.

Ao invés de atacar o que deve ser atacado (o lixo que é a escola no Brasil, porque o Estado arrecada impostos como um dragão faminto, mas não dá nada em troca), o Estado e seu braço armado, o governo socialista que temos há décadas, que adora papos-furados como cotas raciais e bijuterias semelhantes, invade o espaço institucional do cotidiano escolar com sua vocação maior e eterna: o controle absoluto da vida nos seus detalhes mais íntimos.

E ninguém parece enxergar isso, muito menos a pedagogia e sua vocação, nos últimos anos, para livros bobos da moda e palestrantes de autoajuda.

Quando ouço alguma "autoridade pública em bullying", sinto que estou diante de um inquisidor, que, como todos, sempre se acha representantes do "bem".

Seria de bom uso dar aulas de história dos perfis psicológicos dos grandes inquisidores, como Torquemada e Bernard de Gui, para essas "autoridades públicas" em invasão da vida íntima das pessoas e das instituições. Eles descobririam sua ascendência direta do grande inquisidor de Dostoiévski ("Irmãos Karamazov").

Em breve, a melhor solução para o professor será a indiferença preventiva para com os alunos. Melhor uma aula burocrática e avaliações burocráticas do tipo "múltipla escolha" ou "diga se é falso ou verdadeiro", mesmo nas universidades, porque assim o aluno não poderá acusar o professor de "desumanidade" ao reprová-lo, ou pior, acusá-lo de bullying porque desconsiderou sua "cultura de ignorante", mas que "merece respeito assim como Shakespeare".

Os "recursos" contra reprovação logo se transformarão em processos contra "bullying intelectual". E os fascistas do controle jurídico da vida terão orgasmos.

Atitudes como estas destroem a autoridade da instituição, dos profissionais que nela trabalham e transformam todos em reféns da "máquina jurídica". O resultado é que família e escola perdem autonomia. O que este novo coronelismo não entende é que existe um risco inerente ao convívio escolar e que as autoridades imediatas, professores e coordenadores é que devem agir, e não polícia ou juízes.

Na minha vida como aluno em universidade tive duas experiências com dois professores que hoje poderiam ser enquadradas facilmente neste papinho de "tratamento desumano", mas que foram essenciais na minha vida profissional e pessoal.

A primeira, quando era um aluno da medicina na Universidade Federal da Bahia, ocorreu no dia em que perguntei a um professor como um paciente terminal via o fato de que ele ia em direção ao nada. Ele disse: "O senhor está na aula errada, deveria estar na aula de filosofia".

Isso, numa faculdade de medicina, significa mais ou menos que você não tem a natureza forte o bastante para encarar a vida como ela é.

A segunda, já na faculdade de filosofia da USP, aconteceu quando um professor me deu zero e disse para procurá-lo. Ao me ver, no meio da secretaria e na frente de vários funcionários e alunos, ele disparou: "Suas ideias são ótimas, seu português é um lixo".

Em vez de preparar a polícia para prender bandidos que assaltam casas e restaurantes aos montes, o governo prefere brincar com essas bijuterias, fingindo que cumpre sua função de garantir a segurança pública. Será que isso é medo de enfrentar os criminosos de verdade?

domingo, 10 de junho de 2012

Presença de Goethe





"DESEJAIS" - dizia Benedetto Croce - "fugir da baixa atualidade e ficar sempre atual? Refugiai-vos naquilo que jamais teve atualidade!" Refugio-me em Goethe, e fico surpreendido com a sua presença.

Quarenta e cinco volumes, cheios de poemas, de tragédias, de romances, de contos, de crítica, de filosofia, de ciências naturais, de tudo aquilo quanto existe entre o céu e a terra, e alguma coisa ainda mais. É o maior poeta e o mais universal dos tempos modernos. É o supremo modelo da existência espiritual nestes tempos.

Realmente? Essa estátua impassível seria a expressão de uma vida exemplar? Fogo, entusiasmo, coerência, onde estão nesse revolucionário que acabou ministro de Estado, nesse artista que dedicou metade de sua vida à óptica e aos minerais, nesse apaixonado que representa o papel de deus olímpico? Onde está a coerência nessa multidão de obras, dois terços das quais são completamente falhos? Dessa obra que louvam sempre sem conhecê-la, o que é que ficou? Hesito em responder. Os mais belos poemas da língua alemã, ao lado de mil futilidades em versos inábeis; as Elegias romanas, única poesia moderna digna da Antiguidade, ao lado de penosas imitações classicistas; a sabedoria sonora do Tasso e da Ifigênia, ao lado de fracas peças históricas; a tempestade juvenil do primeiro Fausto, em face de comédias ridículas pela incapacidade de provocar risos. Desigualdade surpreendente. O Werther, a grande paixão, desfigurado por um sentimentalismo insuportável; os romances de Wilhelm Meister, espécie de suma da civilização humanística, quase ilegíveis por sua técnica de romance antiquada. As Afinidades eletivas, primeira obra-prima do romance psicológico, de um tédio torturante. Todas as manifestações de um enfadonho classicismo pesam ao lado da sabedoria enternecedora de um velho homem, como nessas Conversações com Eckermann. Enfim, o segundo Fausto, em que Goethe misturou os mistérios mais sublimes a futilidades inexplicáveis; fogo de artifício, onde um grande espírito se dispersa em mil cintilações luminosas. Onde está a unidade de tal obra?

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