sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Noturno

Um maravilhoso soneto do poeta Bruno Tolentino.





Não sou o que te quer. Sou o que desce
a ti, veia por veia, e se derrama
à cata de si mesmo e do que é chama
e em cinza se reúne e se arrefece.

Anoitece contigo. E me anoitece
o lume do que é findo e me reclama.
Abro as mãos no obscuro. Toco a trama
que lacuna a lacuna amor se tece.

Repousa em ti o espanto que em mim dói,
noturno. E te revolvo. E estás pousada,
pomba de pura sombra que me rói.

E mordo teu silêncio corrosivo,
chupo o que flui, amor, sei que estou vivo
e sou teu salto em mim, suspenso em nada.


(In: Anulação & outros reparos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 167)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Os infortúnios da melancolia






Marquês de Sade (século 18) escreveu, entre outras obras, "Justine ou os Infortúnios da Virtude", sempre vista como uma obra erótica ou de crítica política. Mas ela é mais do que isso.

Se Sade fosse apenas um escritor "jacobino" (como fazem dele os maníacos por crítica política) ou um escritor que só fala de sexo (como fazem dele os risíveis defensores da redenção humana através de uma gozada na boca de uma assustada menina de 13 anos que engole o esperma em prantos), ele seria um escritor menor.

Não, Sade era um filósofo que achava que a natureza é má, incluindo a natureza humana e sua história. O "divino" marquês se inscreve numa tradição (dos trágicos, gnósticos, maniqueus, cátaros) que se pergunta se a natureza (ou Deus) não seria em si má, cruel e perversa. Não seria o cosmo uma câmara de torturas?

Eu, nos meus piores dias, me pergunto se essa tradição não teria razão. Guardo-a em minha alma como um veneno íntimo, uma irmã gêmea, sempre em vigília, pronto a me asfixiar de lucidez.

A marca mais "física" dessa dúvida (quanto à validade da vida e de seus infinitos rituais inúteis) é quando o corpo fica muito pesado e o próprio caminhar se torna uma tarefa impossível -como no caso da personagem melancólica Justine do novo filme de Lars von Trier, "Melancolia".

Muitos dos grandes filósofos, como Descartes, Pascal, Leibniz e Kant (entre outros) temiam que esses pessimistas tivessem razão e que o único afeto inteligente diante da vida fosse a tristeza, ou, melhor dizendo, num vocabulário filosófico elegante, a melancolia. Se os melancólicos tiverem razão, "não há esperanças para nós", como vaticina a profetisa melancólica Justine de Von Trier.

O cineasta dinamarquês vem dialogando com essa tradição há algum tempo. Sua briga não é com a sociedade apenas contemporânea (ou do "capital", como creem os ingênuos ou mal informados), sua discussão é bem mais profunda do que pensa nossa vã filosofia.

Em "Dogville", Grace (graça!), mulher linda, trabalhadora e generosa, ao final, se torna, com razão, vingativa e assassina porque os habitantes de Dogville eram como cães miseráveis. Em "Anticristo", a mãe prefere gozar a impedir que o filho pule pela janela (além de torturá-lo com pequenas coisas ao longo de sua curta vida). Ela é a testemunha encarnada de que "aqui reina o caos" e de que a "natureza é o templo de Satã".

A razão, em "Dogville", e a psicologia "científica", em "Anticristo", são objetos de ironia cruel. Em "Melancolia", o cunhado milionário da melancólica é o risível (e covarde) crente nos cálculos da ciência oficial que nega a rota de colisão entre a Terra e o gigantesco planeta chamado Melancolia.

Lars von Trier nos dá sua versão dos infortúnios de Justine. Se em Sade ela é a vítima indefesa da crueldade de uma natureza que ama torturar suas criaturas, revelando a inutilidade da virtude no mundo (lembremos que Sade usa o nome Justine como alternativa para "infortúnio"), em Von Trier ela é a vítima indefesa da melancolia porque (sempre) percebeu que "a vida na Terra é má" e condenada. Um acaso isolado e único no universo: "Estamos sós", diz a profetisa Justine.

Mesmo a comida mais gostosa revelará seu sabor verdadeiro: a substância última das coisas são as cinzas. Ao tocar o mundo com a boca, a profetisa Justine sente o "gosto" da verdade infeliz das coisas.

No filme, melancolia não é apenas o nome de uma doença, mas o nome do planeta que prova que os melancólicos são profetas.

Quando finalmente se comprova a inevitabilidade da "dança da morte" (nome dado no filme para a rota de colisão), Justine aparentemente sai da tristeza e se revela a mais corajosa das duas irmãs. Ela não se cura, o universo é que deixa de "mentir" sobre si mesmo.

Numa noite clara, ela oferece seu corpo nu ao planeta Melancolia, como uma mulher apaixonada faz para seu amante, buscando seu beijo. Uma declaração de amor à morte.

Imagine, nesta segunda-feira, por um instante, se Justine tiver razão e estivermos mesmo sós num universo feito de cinzas.

Para baixar o torrent e a legenda do filme clique aqui

Abertura do filme "Melancholia":


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Ontologia leviana dos seios







Hoje acordei um tanto leviano. Em dias assim, falo a sério de filosofia. O niilista respira identificando em toda parte a morte da metafísica. Pra quem não sabe, a metafísica é a "ciência" segundo a qual existiria um mundo de formas eternas e plenas, invisível aos olhos, mas visível ao "espírito".
          
Engraçado como muita gente combate a artificialização da beleza do corpo em nome de uma beleza "natural". O que essa gente não entende é que se a metafísica morreu, a existência de uma natureza "natural" também morreu, porque tudo neste mundo da matéria é impermanente, vago, impreciso, e, acima de tudo, dolorido.
         
Com a morte de Deus (símbolo máximo da morte da metafísica), o corpo velho é apenas um corpo feio e decadente. Se Deus não existe, toda beleza artificial é permitida. Logo, viva o silicone. Mas não quero falar de Deus, quero falar de seios.
           
A vida pode ser miserável e pequena. Triste constatação. Mas miserável pode ser apenas a constatação de que anatomia é destino, como dizia Freud. O corpo, essa massa mortal que perde a forma com o tempo, é nosso lar, uma casa em que habitamos e que nos abandona, deixando-nos a herança do pó.
           
"A Pele em que Habito", título do novo e maravilhoso filme de Almodóvar, define nosso destino. Mas não vou falar do filme, pois é aquele tipo de filme de que quanto menos se fala, melhor, porque quando se fala dele, corre-se o risco de falar demais.
          
O freudiano, agostiniano e dostoievskiano Nelson Rodrigues, o maior filósofo brasileiro, escreveu um livro chamado "Asfalto Selvagem, Engraçadinha, Seus Pecados e Seus Amores", no qual a heroína Engraçadinha, segundo ele, seria infeliz porque tinha seios belos demais.
           
O mundo não perdoa a (a falta de) beleza, seja ela visível ou invisível. Por um seio bonito, mata-se e morre-se. No mínimo paga-se caro.
           
Acho que o SUS deveria pagar cirurgias plásticas para mulheres pobres colocarem silicone nos seios. Por que não? Travestis gozam de cirurgias de mudança de sexo, por que nossas mulheres não deveriam ter o direito de ficarem mais belas?
           
Ontologia é a disciplina da filosofia que estuda as essências das coisas e dos seres vivos. A ontologia diz o que você é. A ontologia da mulher passa pelos seios, pelas pernas e pela doçura, assim como a do homem pela potência e pelo dinheiro. O resto é mentira.
           
Tanta tinta corre no mundo em nome da política e da economia, e, ainda assim, os seios podem decidir a vida e o amor verdadeiro. Diante deles, a alma desfalece em desejo. Como disseram filósofos no passado, se o nariz de Cleópatra fosse diferente, a história do Ocidente teria sido outra.
           
Fala-se muito que devemos dar valor à alma, ao que se tem "dentro de si", ao que se "é", e não ao que se "tem", mas, o dia a dia, aquele mesmo em que acordamos atordoados pela constante constatação de nossas carências e impotências, parece dizer o contrário. O futuro pode sim ser julgado pela beleza dos seios.
          
 Isso pode ser um indicativo da solidão do mundo no qual só a matéria existe. O niilismo, assim como o Demônio, o maior de todos os humanistas, respeita a angústia das feias.
           

Este fato, como todo fato obscenamente verdadeiro, pede silêncio de nossa parte. Mas eu, que peco constantemente em nome do vício, confesso: as pessoas quase sempre fazem tudo pelo que podem ter e não pelo que podem ser. E, muitas vezes, o "ser" é decorrente do "ter". E não falo de grana, falo de seios.
           
Fosse Platão um admirador do sexo frágil, abriria seu diálogo "O Banquete" (sobre o amor) pela ontologia dos seios da mulher.
           
Sendo assim, a indústria da beleza deveria receber maior atenção da filosofia e não apenas suas pedras de desprezo.
           
Colocar silicone pode ser um pedido discreto de amor. Uma forma tímida de buscar o olhar negado. Com o tempo, a forma dos seios abandona o mundo, ficando presa no mundo miserável do passado. Não se pode pegar com a mão ou com a boca a lembrança dos seios perdidos, apenas a forma dos seios reconstituídos.

A beleza artificial é uma batalha discreta contra o vazio do corpo e da alma.


True Outspeak - 9 de novembro de 2011

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

No Enem, a saudação ao Duce



Por Demétrio Magnoli


Questão do Enem, 2001: "A Lei 9.491, de 9 de setembro de 1997, criou o Programa Nacional de Desestatização, que reordena a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público . A referida lei representa um avanço não só para a economia nacional, mas também para a sociedade brasileira, porque (...)". Resposta, segundo o gabarito: "amplia os investimentos produtivos e a riqueza geral da nação".

A questão acima é uma invenção minha: nunca foi proposta num Enem. Mas o que diria Fernando Haddad se, no governo FHC, o MEC a tivesse inserido num exame nacional que decide o futuro universitário de milhões de estudantes brasileiros? Desconfio que, coberto de razão, ele classificaria a prova como um gesto de covardia autoritária pelo qual os candidatos seriam forçados a se curvar à doutrina política do poder de turno, repetindo compulsoriamente o credo expresso no site do Planalto sob pena de exclusão do ensino superior. Pois o atual ocupante do MEC acaba de produzir um gesto assim, indigno de uma nação democrática, na mais recente edição do Enem.

Eis o texto da questão: "A Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003, inclui no currículo dos estabelecimentos de ensino (...) a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e determina que o conteúdo programático incluirá o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil (...) . A referida lei representa um avanço não só para a educação nacional, mas também para a sociedade brasileira, porque (...)". Resposta, segundo o gabarito: "impulsiona o reconhecimento da pluralidade étnico-racial do país". Sob Haddad, o Enem converteu-se em campo de reeducação ideológica para jovens. Diante disso, pouco significam os sucessivos espetáculos de incompetência gerencial que o atormentam.

A lei que os candidatos estão obrigados a celebrar não é uma ferramenta de combate ao preconceito racial, mas a condensação da doutrina racialista. Seu pressuposto é a divisão da humanidade em raças. Segundo ela, as pessoas não são indivíduos mas componentes de "famílias raciais" definidas por ancestralidades supostas e involucradas em culturas singulares. As escolas, prega a lei, devem ensinar uma história particular do "povo negro" (por oposição implícita ao "povo branco"). Desde a mais tenra idade, os estudantes aprenderiam a enxergar a si mesmos como participantes de uma comunidade racial.

O gabarito da questão está errado e inexiste resposta correta entre as alternativas apresentadas no exame. Mas a resposta certa, segundo o próprio MEC, consta de um parecer do Conselho Nacional de Educação no qual se explica que a lei "deve orientar para (...) o esclarecimento de equívocos quanto a uma identidade humana universal". Tal resposta não aparece entre as alternativas, pois ela explicitaria a insolúvel contradição entre a lei da educação racial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que repousa sobre a afirmação da realidade de "uma identidade humana universal".

O contrato constitucional das democracias está amparado no princípio da pluralidade. O princípio significa que não se reconhece doutrina ou ideologia oficialmente verdadeira, à qual a nação deveria fidelidade ou obediência. Dele se extrai um corolário: o sistema de ensino não pode promover catequese ideológica. Escolas, livros didáticos e exames vestibulares não têm o direito de doutrinar - isto é, de atribuir estatuto de verdade científica ao que não passa de um ponto de vista político. Haddad evidencia no Enem a sua visceral aversão ao princípio da pluralidade. Ele é ministro num Estado democrático, mas sonha ser comissário de um Estado totalitário.

A questão escandalosa não é um raio no céu claro. Nos últimos anos, enquanto se metamorfoseava em vestibular nacional, o Enem converteu-se num pátio de folguedos da pedagogia da doutrinação. O desfile de catecismos ideológicos abrange, ao lado de versões cômicas de um marxismo primitivo, constrangedores panfletos do ambientalismo apocalíptico e manifestos rudimentares do multiculturalismo pós-moderno. Os exames, especialmente suas seções de ciências humanas, parecem emanar de um acordo de partilha territorial firmado entre os arautos acadêmicos do cortejo de ONGs e "movimentos populares" associados ao governo. Contudo, mesmo sobre esse deplorável pano de fundo, exigir que milhões de jovens estudantes repitam como autômatos as sílabas, palavras e frases escritas pelo Palácio do Planalto equivale a ultrapassar a fronteira da obscenidade.

Meu avô materno, um antifascista perseguido pelo regime de Mussolini, deixou a Itália com a esposa e dois filhos pequenos na hora da eclosão da guerra mundial. No Brasil, beneficiando-se de uma bolsa de estudos baseada no mérito, minha mãe pôde ser matriculada no prestigioso Dante Alighieri, que era um colégio da comunidade italiana de São Paulo. Por uma dessas amargas ironias, durante dois anos, até a declaração brasileira de guerra ao Eixo, ela tinha a obrigação, compartilhada com todos os colegas, de fazer a saudação ao Duce à entrada da escola. A exposição a desenhos animados violentos não transforma crianças em adultos assassinos. A rotina da saudação diária a Mussolini em nada reduziu o desprezo devotado por minha mãe ao fascismo. Os estudantes não aderirão ao credo identitário do racialismo por serem compelidos a pagar pedágio à verdade ideológica oficial no Enem. Mas a democracia brasileira fica um pouco menor quando o ministro da Educação veste a fantasia do Duce.

Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br - O Estado de S.Paulo

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Arendt & Heidegger (Por Paulo Francis)




Amor de... Sempre fica. É a explicação mais óbvia da paixão de Hannah Arendt por Martin Heidegger, de uma atraente aluna, virgem de 18 anos, pelo seu professor "feiticeiro", intelectualmente, de 35 anos, Heidegger, o filósofo que consolidou a filosofia existencial, nas pegadas de Kierkegaard. Desde Kant não se acreditava numa filosofia que fosse centrada na criatura humana, porque Kant demonstrou a incompatibilidade do nosso ser com o mundo material. Heidegger tentou restabelecer o "eu", como protagonista. Foi nazista, mas não há na sua obra uma única linha de racismo biológico, nota George Steiner no "Times Literary Supplement". Nazismo para ele era uma volta às raízes naturais do homem antes que fossem extirpadas pelo pensamento científico e tecnológico, este principalmente, que Heidegger acha que destruirá a civilização. Uma bobagem, um "nazismo particular", na frase precisa de seu inquisidor francês, em 1945, e que Arendt, judia, resolveu relevar, em parte pela referida paixão, em parte porque é profunda admiradora da filosofia de Heidegger (seu melhor livro, "A condição humana", é influenciado por "Ser e existir", a obra-prima incompleta de Heidegger). Elzbieta Ettinger, uma acadêmica suburbana, escreveu um livro, "Hannah Arendt e Martin Heidegger", cujo principal interesse é que conseguiu autorização dos herdeiros de Arendt para citar suas cartas a Heidegger e de parafrasear as de Heidegger a ela. Só cita o masoquismo sexual servil de Arendt, difamando-a. A história é a que contei acima. O resto é besteira.

"As grandes paixões são raras como as obras-primas." Balzac.

True Outspeak (02 de Novembro de 2011)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Feia Nudez



 Por Nelson Rodrigues

A propósito da melindrosa de 1929, escrevi, certa vez: — “Como
é antigo o passado recente”. Gostei da frase e pinguei-lhe um ponto
de exclamação. De então para cá, sempre que posso repito, e não
sem uma certa vaidade autoral: — “Como é antigo o passado
recente”.
E, de fato, não há mulher mais antiga, mais fenecida, do que a
melindrosa de 1929. É anterior a qualquer baixo-relevo assírio,
fenício ou que outro nome tenha. Há pouco, andei repassando um
dos primeiros números de O Cruzeiro. Exatamente de 1929, se não
me engano. E vi as grã-finas da época. Já não falo do vestido sem
cintura, nem do penteado, nem do sapato etc. etc. O que me importa
é valorizar o espantoso olhar e o espantoso sorriso.
Cada época sorri de certa maneira, olha de uma certa maneira.
Repito: — por um olhar, ou por um sorriso, pode-se dizer de uma
certa dama: — “Esta é do século Fulano, ou do século Beltrano”. E
quanto mais antiga, a pessoa mais se parece conosco. Ao passo que
há, entre nós e a melindrosa, como que uma distância abismai.
Dirá alguém que de 1929 para cá são passados apenas 39
anos. Ah, não acreditem no falso tempo das folhinhas. A idade da
melindrosa de O Cruzeiro nada tem a ver com esses míseros,
escassos 39 anos. E ela sorri de um tal jeito, e olha de tal jeito, que,
por vezes, me ocorre a seguinte suspeita: — “A melindrosa de 1929
nunca existiu”.
Se me perguntarem o que havia no seu olhar e no seu sorriso,
eu diria que ambos eram idiotas. Recorram às velhas edições de O
Cruzeiro e, mais velhas ainda, do Fon-Fon, da Revista da Semana.
Vejam as mais belas mulheres e as mais amadas do tempo. Olhavam
e sorriam como débeis mentais. Aí está dito tudo: débeis mentais. E
só admira que alguém as suportasse, ou pior, que alguém as
desejasse.

CIGARRO, DEMOCRACIA E TENTAÇÃO LIBERTICIDA

 
 
 
Muito engraçadas as reações de alguns não-fumantes militantes aos comentários que fiz aqui sobre as leis draconianas que passaram a vigorar em São Paulo, em Brasília e no Rio e que tendem a se espalhar por todo o país. Uma indagação poderia sintetizar seu ponto de vista:
— Por que eu sou obrigado a agüentar a fumaça dos outros?
Não, não! Vocês não são obrigados a agüentar coisa nenhuma! O que se pergunta é por que não podem existir locais em que se pode fumar, desde que esteja estampado na porta que ali se fuma. O que se pergunta é por que não se criam regras para a liberdade, JÁ QUE NÃO SE TRATA DE UM CRIME, em vez de se criarem regras para a perseguição. A lei que vigora nessas três capitais NÃO SE CONTENTA EM PROTEGER O DIREITO DOS NÃO-FUMANTES, ELA AGRIDE O DIREITO DE QUEM FUMA, OU PORQUE QUER OU PORQUE É VICIADO, TANTO FAZ. Há, pois, um problema de natureza ética na legislação e um, entendo, de natureza constitucional. ESTÃO CRIMINALIZANDO O QUE A LEI NÃO DEFINE COMO CRIME.
Que se queira banir o cigarro de prédios públicos, vá lá. Que prédios privados escolham eliminar o cigarro de suas dependências, vá lá. HAVER UMA LEI QUE IMPEDE EDIFÍCIOS PRIVADOS DE TER FUMÓDROMOS É UMA EXORBITÂNCIA. O VALOR DEMOCRÁTICO NOS INDICA QUE SERIA O CASO DE REGULAR AS CONDIÇÕES DOS FUMÓDROMOS, ISTO SIM, PARA QUE FOSSEM, DE FATO, EFICIENTES.
É curioso. A legislação diz que algumas drogas são ilícitas. Não obstante, há uma política de redução de danos, abraçada freqüentemente pelo estado, nas suas várias esferas, para o usuário dessas substâncias. Para o fumante, que nada faz de ilegal, ao contrário, escolheu-se o caminho da demonização, da humilhação. ESTÁ ERRADO.
Leio na Folha de S. Paulo:
Segundo a secretaria [de Saúde], a intenção é criar, na regulamentação da lei, um grupo com cerca de 250 fiscais, que vai treinar outros agentes e visitar os estabelecimentos -só a capital tem 27,5 mil bares e restaurantes. A pasta não contratará novos fiscais. Serão agentes dos CVSs (Centro de Vigilância Sanitária) estadual e municipais, além do Procon. Não divulgou, porém, o total de fiscais da vigilância estadual. O grupo fará também uma campanha educativa prévia nos estabelecimentos, como determinou emenda incluída pela Assembleia no projeto.
A equipe terá a atribuição única de atuar na aplicação da lei. Não participará de outras áreas dos CVSs, como a fiscalização de remédios e alimentos. O Procon disse que a multa, pelo Código de Defesa do Consumidor, varia de R$ 212 a mais de R$ 3 milhões (depende do tamanho do estabelecimento). Serra, que está nos EUA, disse ontem que o governo pretende criar um disque-denúncia. “Trata-se de um grande desafio. Só o controle do governo não vai bastar. É essencial a cooperação dos empresários e, principalmente, do público.”

Pois é… Sugiro que os agentes se vistam com camisas negras. Em breve, dada a facilidade com que a língua adere à metonímia, podem começar a ser chamados de “Os Camisas Negras”. O tempo lhes indicará a necessidade de andar ao menos com uns cacetetes para conter os fumantes mais exaltados. Depois será preciso regular o uso do cacetete nesses casos. Finalmente, cada usuário do cacetete saberá como empregá-lo da melhor maneira…

Cigarro faz mal. Eu não me orgulho de fumar. Na verdade, acho que devo parar com isso. Como todo vício, este também não é bom. MAS EU SEMPRE TEMO MAIS O VÍCIO DO AUTORITARISMO. Sei que a lei é popular. E eu com isso? Eu não sou popular.
*
PS1: Ah, sim: já sei que virá aquele grupo me perguntar por que não afirmo o mesmo sobre as drogas consideradas ilegais. Porque são ilegais!!! E o Brasil não será o país a descriminá-las sozinho, isolado do que se faz no mundo. Já escrevi isso 300 vezes. E também estou certo de que seria um flagelo para a saúde pública. Minha restrição nada tem de preconceituosa. Do ponto de vista individual, cada um sabe de si. Minha tolerância com consumidores de drogas que alteram a consciência é baixa. Eu as evito. Mas isso é uma escolha pessoal. PS2 – A lei que vigora em São Paulo, Rio e Brasília seria até branda se o tabaco fosse uma substância ilegal. Mas não é. Aliás, fosse ilegal, ela seria bem dura do que é a lei antidroga no que concerne ao porte e uso de maconha. E isso não deixa de ser muito interessante: tolerância com quem consome o ilegal, e intolerância com quem consome o legal.
PS3 – A popularidade da lei se deve ao fato de que vivemos dias um tanto exóticos, não? O politicamente correto só se impôs como valor, nas diversas esferas da vida, porque as liberdades individuais estão em baixa.
PS4 – Não, eu não quero impor o cigarro a ninguém. Acho o fim da picada que alguns não-fumantes queiram me impedir de fumar com aqueles que querem fumar comigo. Sei que um mundo sem cigarro poderia até ser melhor. Mas um mundo sem estúpidos também seria. E, no entanto, não há lei possível contra o vício da estupidez.
Por Reinaldo Azevedo

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

As Nuanças de Jens Peter Jacobsen









POR OTTO MARIA CARPEAUX

Contribuindo à definição da nossa época, poder-se-ia dizer: é uma época sem nuanças. O espírito dominante, coletivista, não as suporta e não as tolera. Desafiando a frase brilhante e venenosa de Renan — "la vérité est une nuance entre mille erreurs"1 — a nossa época prefere as verdades simplificadas, "verdades em bloco", dogmáticas, das quais a nuança seria uma heresia. Faltam as nuanças entre as cores locais, duramente justapostas, dos pintores; faltam as nuanças na língua homofônica dos músicos. E quem procuraria nuanças no pão quotidiano dos intelectuais e dos pobres, no cinema? Estamos coletivamente felizes, isto é, profundamente infelizes, mas também sem nuanças. Morremos mesmo, todos, sem nuanças, a mesma morte.
           
Neste mundo, duma só cor e ruidosamente unânime, ressoa, em voz muito baixa, a reza do poeta, a reza de Rilke:
            
"Dá, ó Senhor, a cada um a sua própria morte."

Sei em que Rilke pensou escrevendo este verso. Foi o mesmo em que pensou ao escrever, no romance Os cadernos de Malte Laurids Brigge, as frases inesquecíveis: "Para fazer um verso, precisa-se ter visto muitas cidades, homens e coisas. Precisa-se ter experimentado os caminhos de países desconhecidos, despedidas longamente pressentidas, mistérios da infância não esclarecidos, mares e noites de viagens. Não basta mesmo ter recordações: precisa-se saber esquecê-las, precisa-se possuir a grande paciência de esperar até que elas voltem. Pois as próprias recordações não o são ainda. Antes, as recordações devem entrar em nosso sangue, nosso olhar, nosso gesto; quando, então, as recordações se tornam anônimas e não se distinguem do nosso próprio ser, então pode acontecer que, numa hora rara, nasça a primeira palavra dum verso." Pensou Rilke na mesma pessoa, quando fez do herói do seu romance um dinamarquês. Pensou no poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen.

sábado, 6 de agosto de 2011

O Inferno Lírico de Badou Sarcass III



(ou o cantor de silêncios)

Não! Enganam-se todos, estou lúcido. Se agora pereço, é por amor à vida.

Minha loucura não é de hoje, é de sempre. Portanto, calem-se!

Sou uma inexistência sóbria, o preferido dos deuses de minha timidez.

Se invoco a verdade, é para provar que ela não existe.

Se clamo por justiça é para dizer que não pertenço a este lugar.

Estou farto do mortal e dos mortais...

Desse maniqueísmo frio do qual sou fruto.

As ciências tudo me dizem, mas eu nada entendo.

Há uma vontade desesperada de gritar,

O grito infinito, o grito de deus.

“Ah Badou, se pudesses...

...mas teu cantar são silêncios.”

E-Book: "A Vida Intelectual" de Antonin-Gilbert Sertillanges



Grande livro do padre Antonin-Gilbert Sertillanges (1863 – 1948). Uma magnífica reflexão acerca do papel do pensamento e do pensador no mundo. Segue um trecho e, logo depois, o link para download:

Eis-me aqui, homem do século XX, contemporâneo dum drama permanente, testemunha de
confusões como porventura o mundo nunca presenciou desde que os montes surgiram e os
mares foram atirados para seus antros. Que fazer por este século arquejante? Mais do que
nunca, o pensamento espera pelos homens e os homens pelo pensamento. O mundo corre
perigo por falta de máximas de vida. Encontramo-nos num comboio que desfila a toda a
velocidade, e não há sinalização, nem agulheiros. O planeta não sabe para onde vai, a sua lei
abandona-o: quem lhe restituirá o seu sol?

O que digo não visa a estreitar o campo da investigação intelectual, nem a confiná-lo no
estudo exclusivamente religioso. O decurso do livro o mostrará. Já disse que toda a verdade é
prática, que toda a verdade salva. Mas indico um espírito, e este espírito exclui qualquer forma
de diletantismo.
Exclui também certa tendência arqueológica, certo amor do passado que se desinteressa das
dores actuais, certa estima do passado que parece ignorar a presença universal de Deus. Nem
todos os tempos valem o mesmo, mas todos os tempos são tempos cristãos, e há um que para
nós e praticamente os ultrapassa a todos: o nosso. Para ele são os nossos recursos nativos, as
nossas forças de hoje e as de amanhã, e por conseguinte os esforços que lhes devem
corresponder. Não nos assemelhemos aos que dão sempre a impressão de pegar às borlas do
caixão nos funerais do passado. Utilizemos, como vivos, o valor dos mortos. A verdade é
sempre nova. Todas as virtudes antigas querem reflorescer, exactamente como a erva da
madrugada beijada pelo orvalho. Deus não envelhece. É mister ajudá-lo a renovar, não os
passados enterrados, nem as crónicas extintas, mas a eterna face da terra.

Clique Aqui para download do livro

sábado, 30 de julho de 2011

Ler ou não ler, eis a questão



Por Luiz Felipe Pondé (Publicado na Folha de São Paulo em 25/07/2011)

Você gosta de Dostoiévski? Se a resposta for "não", o problema está em você, nunca nele. Uma coisa que qualquer pessoa culta deve saber é que Dostoiévski (e outros grandes como ele) nunca está errado, você sim.

Se você o leu e não gostou, minta. Procure ajuda profissional. Nunca diga algo como "Dostoiévski não está com nada" porque queima seu filme.


Costumo dizer isso para meus alunos de graduação. Eles riem. Aliás, um dos grandes momentos do meu dia é quando entro numa sala com uns 30 deles. Inquietos, barulhentos, desatentos, mas sempre prontos a ouvir alguém que tem prazer em estar com eles. Parte do pouco de otimismo que experimento na vida (coisa rara para um niilista... risadas) vem deles.


Devido a essa experiência, costumo rir de muito blá-blá-blá que falam por aí sobre "as novas gerações".


Um exemplo desse blá-blá-blá são os pais e professores dizerem coisas como: "Essa moçada não lê nada".


Na maioria dos casos, pais e professores também não leem nada e posam de cultos indignados. A indignação, depois da Revolução Francesa, é uma arma a mais na mão da hipocrisia de salão.


Mas há também aqueles que dizem que a moçada de hoje é "superavançada". Não vejo nenhuma grande mudança nessa moçada nos últimos 15 anos. Mesmas mazelas, mesmas inquietações do dia a dia.


Nada mais errado do que supor que eles exijam "tecnologia de ponta" na sala de aula (a menos que a aula seja de tecnologia, é claro). Atenção: com isso não quero dizer que não seja legal a tal "tecnologia de ponta". Quero dizer que "tecnologia de ponta" eles têm "na balada". O que eles não têm é Dostoiévski.


O "amor pela tecnologia" é sempre brega assim como constatamos o ridículo de filmes com "altíssima tecnologia de ponta" comum nos anos 80 e 90 (tipo "Matrix"). Hoje, tudo aquilo parece batedeira de bolo dos anos 50. O que hoje você acha "sublime" na histeria dos tablets, amanhã será brega como os computadores dos anos 80.


Dostoiévski é eterno como a morte. Mas eis que lendo uma excelente entrevista com um psicólogo professor de Yale na página de Ciência desta Folha da última terça (19) encontro um dos equívocos mais comuns com relação a Dostoiévski.


O professor afirma que agir moralmente bem não depende de crenças religiosas. Corretíssimo. Qualquer um que estudar filosofia moral e história saberá que acreditar em Deus ou não nada implica em termos de "melhor" comportamento moral. Crentes e ateus matam, mentem e roubam da mesma forma.


E mais: se Nietzsche estivesse vivo veria que hoje em dia -época em que ateus são comuns como bananas nas feiras- existe também aquele que vira ateu por ressentimento.


Nietzsche acusa os cristãos de crerem em Deus por ressentimento (o cristianismo é platonismo para pobre). Temos medo da indiferença cósmica, daí "inventamos" um dono do Universo que nos ama e, ao final, tudo vai dar certo.


Quase todos os ateus que conheço o são por trauma de abandono cósmico. Se o religioso é um covarde assumido, esse tipo de ateu (muito comum) é um "teenager" revoltado contra o "pai".


Mas voltando ao erro na leitura de Dostoiévski. Do fato que religião não deixa ninguém melhor, o professor conclui que Dostoiévski estava errado quando afirmou que "se Deus não existe, tudo é permitido". Erro clássico.


Essa afirmação de Dostoiévski não discute sua crença, nem o consequente comportamento moral decorrente dela (como parece à primeira vista). Ela discute o fato de que, pouco importando sua crença, se Deus não existe, não há cobrança final sobre seus atos. O "tudo é permitido" significa que não haveria "um dono do Universo" para castiga-lo (ou não), dependendo do que você fizesse.


Claro que isso pode incidir sobre seu comportamento moral, mas apenas secundariamente. A questão dostoievskiana é moral e universal, não pessoal. Pouco importa sua crença, a existência ou não de Deus independe dela, e as consequências de sua existência (ou não) cairão sobre você de qualquer jeito. O problema é filosófico, e não psicológico.


O cineasta Woody Allen entendeu Dostoiévski bem melhor do que o professor.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

O Inferno Lírico de Badou Sarcass II






Um trago casto invejável,
Areias de minha solidão infame.
Afogo-me neste mundo em transe,
Pronto para deixar de existir...

quinta-feira, 14 de julho de 2011

ERA BONITO SER HISTÉRICA







Por Nelson Rodrigues 

“Beijarei o punhal que matar Pinheiro Machado” — soluçou o orador. E, realmente, enfiou a mão no colete, ou cinto, e de lá arrancou, com ágil ferocidade, o punhal homicida. Logo, à vista de todos, beijou, chorando, o punhal. As lágrimas deslizavam pela face cava. E o orador, prolongando o efeito cênico, ainda ficou, por algum tempo, com o punhal erguido e profético. Um uivo unânime subiu das entranhas do silêncio. O comício veio abaixo. Sujeitos atiravam para o ar os chapéus de palha.

Mas resta de pé a pergunta: — Por que exatamente o punhal? Por que o ódio havia de ter a forma esguia e diáfana do punhal? 1915. Era o Brasil do fraque e do espartilho. Nas salas de visitas, havia sempre uma escarradeira de louça, com flores desenhadas em relevo. Eu tinha meus três anos e estava em Pernambuco. Três anos. Aos três anos, o sujeito começa a inventar o mundo. Minha família morava na praia. E eu começava a inventar o mundo.

Primeiro, foi o mar. Não, não. Primeiro, inventei o caju selvagem e a pitanga brava. Para os meus três anos, o mar, antes de ser paisagem, foi cheiro. Não era concha, nem espuma. Cheiro. Meu pai, antes de ser figura, gesto, bengala ou pura palavra, também foi cheiro. Ninguém tinha nome na minha primeira infância. A estrela-do-mar não se chamava estrela, nem o mar era mar. Só quando cheguei ao Rio, em 1916, é que tudo deixou de ser maravilhosamente anônimo. Eis o que eu queria dizer — o primeiro nome que ouvi foi o de Pinheiro Machado. Alguém se chamava Pinheiro Machado. A princípio, ele não foi um destino, um perfil, um fraque, mas tão-somente um nome. Um nome solto no ar, quase um brinquedo auditivo. Eu não inventara ainda a morte, não inventara ainda o punhal, nem a palavra “defunto”.

Escrevi, não sei onde, que foi um suicida que me revelara a morte e me ensinara a morrer. Engano, engano. Foi Pinheiro Machado. Sim, Pinheiro Machado. E, súbito, eu aprendia que o homem morre e que o homem mata. Ainda hoje, e até nas minhas crônicas esportivas, falo muito, com uma constância obsessiva, no assassinato de Pinheiro Machado. Uns acham graça e ninguém entende a insistência cruel. Ah, eu teria de explicar que há, em qualquer infância, uma antologia de mortos; e, para o menino que fui, Pinheiro Machado é um desses mortos fundamentais.

Mas repito a pergunta: — Por que havia de ser o punhal? Pinheiro Machado podia ser assassinado a tiro, a bala. Pouco antes, um jornalista fora assassinado em Pernambuco. Chamava-se Trajano Chacon. Três ou quatro se juntaram e o mataram, a cano de chumbo. Não faca, punhal ou revólver. No caso de Pinheiro Machado, quero crer que o punhal convinha mais à retórica. Na época do soneto, era mais parnasiano. O orador podia tirar o punhal, beijá-lo, quase lambê-lo.

Muitos e muitos anos depois, me vejo subindo a escadaria da Biblioteca Nacional. Estou crispado como o criminoso que vai reler a notícia do próprio crime. Lá dentro, peço a coleção do Correio da Manhã de 1915. Dou o mês do assassinato. Não me lembro se é permitido fumar na sala de leitura; em caso afirmativo, tiro um cigarro e o acendo (guardo o palito na própria caixa). Enquanto não vem a coleção, começo a tecer uma pequena fantasia homicida. Não é mais o Manso de Paiva, mas eu que me escondo atrás de uma coluna. Entra Pinheiro Machado, de fraque. Os rapapés o envolvem: — “Senador! Senador!”. É agora. Corro e mato Pinheiro Machado. Sou assassino. Em seguida, imagino a experiência inversa, de vítima. A dor fulminante da punhalada. Não tenho tempo nem para o espanto, nem para o grito.

O funcionário trouxe a coleção. Começo a ficar tenso. Encontro a edição do crime. Primeiro, passo os olhos no dia, mês e ano (sou um fascinado pelas datas dos velhos jornais e dos velhos túmulos). A manchete rasga as suas oito colunas: — ASSASSINADO o GENERAL PINHEIRO MACHADO! Ao bater estas notas, sinto o abismo entre as duas manchetes: — a de Pinheiro Machado era um berro gráfico, um uivo impresso; a de Kennedy, estupidamente impessoal, crassamente informativa. Ah, as manchetes de hoje não se espantam, nem se desgrenham, nem reconhecem a catástrofe.

O Correio da Manhã conta tudo. Estou vendo Pinheiro Machado, de fraque, chegando ao Hotel dos Estrangeiros. Lá está o seu lindo perfil de moeda. Vinha falar com dois políticos de São Paulo. Era um voluptuoso, um lúbrico do Poder. Sua conquista política era um jogo amoroso. O olho ficava mais doce, lascivo, translúcido. Amorosamente, Pinheiro Machado abriu os braços, enlaçando os dois políticos. E assim, entre um e outro, caminha o general, muito olhado. Claro que todos se voltavam para ver o homem que, segundo os comícios e os jornais, era o autor de todos os presidentes.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

O Inferno Lírico de Badou Sarcass I



Poesia: luz dos fracos, fraqueza dos lúcidos, terror da razão.
Vejo agora, às portas de minh'alma, tua sina.
Tu que me querias morto, aqui me tens.
Sobrevôo sem trégua minha morte vã.
Agora estou aqui, sou teu com meu corpo e meu desejo.
Descubro-me nu, nefasto e régio...
Esta noite escura, um calor etéreo...
Quero ver os portões do lugar pra onde irei.
Minha tortura, Deus meu!
Pode haver alegria maior?
Fui homem, enterrado no mundo:
-Acorde!
-Trabalhe!
-Tu nada és!
Badou, nada é. Só som, fúria e dor.
Ah... mas essa dor é divina...
A dor dos mais nobres deuses.
Descerei tal qual Orfeu e com meus versos
Não há Cérbero que me possa deter.

Objetos


Por Luiz Felipe Pondé

        

  
Humildemente confesso que, quando penso a sério em mulher, muitas vezes penso nela como objeto (de prazer). Isso é uma das formas mais profundas de amor que um homem pode sentir por uma mulher.  E, no fundo, elas sentem falta disso. Não só na alma como na pele. Na falta dessa forma de amor, elas ressecam como pêssegos velhos. Mofam como casas desabitadas. Falam sozinhas. Gente bem resolvida entende pouco dessa milenar arte de amor ao sexo frágil.
        Sou, como costumo dizer, uma pessoa pouco confiável. Hoje em dia, devemos cultivar maus hábitos por razões de sanidade mental. Tenho algumas desconfianças que traem meus males do espírito. Desconfio barbaramente de gente que anda de bicicleta para salvar o mundo (friso, para salvar o mundo).
        Recentemente, em Copenhague, confirmei minha suspeita: a moçada da bike pode ser tão grossa quanto qualquer motorista mal-educado. Trinta e sete por cento da população de lá usa as "magrelas". E nas ciclovias eles são tão estúpidos, estressados e apressados como qualquer motorista "subdesenvolvido". Fecham a passagem de carros e ônibus como se, pela simples presença de seus "eus" perfeitos, o mundo devesse parar diante de tanta "pureza verde".
           Aliás, um modo seguro de ver que alguém NÃO conhece a Europa é se essa pessoa assume como verdade o senso comum de que os europeus são bem-educados. Muitos deles, inclusive, não sabem o que é uma coisa tão banal como uma fila. Outra coisa insuportável é quem toma banho com pouca água para salvar o planeta. Esse tipo de gente é gente porca que arranjou uma desculpa politicamente correta para não tomar banho direito. Provavelmente não gosta de banho mesmo.
              Mas, falando sério, desconfio de homens que não pensam em mulheres como objeto. Pior, são uns bobos, porque, entre quatro paredes, elas adoram ser nossos objetos e na realidade sofrem, porque a maioria dos caras hoje virou "mulherzinha" de tão frouxos que são. Imagino o quão brocha fica uma mulher quando o cara diz para ela: "Respeito você profundamente, por isso não vou...". Pergunto filosoficamente: como achar uma mulher gostosa sem pensar nela como objeto?
               A pior forma de solidão a que se pode condenar uma mulher é a solidão de não fazê-la, de vez em quando, de objeto. E esta é uma forma de solidão que se torna cada vez mais comum. E, sinto dizer, provavelmente vai piorar. A não ser que paremos de torturar nossos jovens com papinhos politicamente corretos sobre "igualdade entre os sexos". Igualdade perante a lei (e olhe lá...). No resto, não há igualdade nenhuma.

              A feminista americana Camille Paglia, recentemente, em passagem pelo Brasil, disse que muitas das agruras das mulheres heterossexuais se devem ao fato de elas procurarem "seres iguais a elas" nos homens. Que pensem como elas, sintam como elas, falem como elas. Entre o desejo "correto" de ter um "eunuco bem-comportado" e um homem que diga "não" à tortura da "igualdade entre os sexos", ficam sozinhas com homens que são "mulherzinhas".
             O que é um homem "mulherzinha"? É um homem que tem medo de que as mulheres achem-no machista, quando, na verdade, todo homem (normal) gosta de pensar em mulher como objeto. Um mundo de "mulherzinhas" acaba jogando muitas mulheres no colo (vazio) de outras mulheres por pura falta de opção. E aí começa esse papinho de que é "superlegal ser lésbica". Afora as verdadeiras, muita gente está nessa por simples desespero afetivo. Nada contra, cada um é cada um. Só sinto que muitos homens "desistam" delas porque a velha "histeria" feminina da qual falava Freud (grosso modo, a insatisfação eterna da mulher) virou algo do qual não se pode falar, senão você é machista.
Muito desse papinho "progressista" é conversa fiada para esconder fracassos afetivos, a mais velha experiência humana, mas que nos últimos anos virou moda se dizer que a culpa é do capitalismo, da igreja, do patriarcalismo, da família, de Deus, da educação, do diabo a quatro. E o pior é que quase todo mundo tem medo de dizer a verdade: uma das formas mais profundas de amor à mulher é fazer delas objeto.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Restaurar é preciso; reformar não é preciso


A reforma ortográfica que se pretende é um pequeno passo (atrás) para os países lusófonos e um grande salto para quem vai lucrar com ela. O assunto me enche, a um só tempo, de indignação e preguiça. O Brasil está na vanguarda dessa militância estúpida. Por que estamos sempre fazendo tudo pelo avesso? Não precisamos de reforma nenhuma. Precisamos é de restauração. Explico-me.
A moda chegou por aqui na década de 70, espalhou-se como praga divina e contribuiu para formar gerações de analfabetos funcionais: as escolas renunciaram à gramática e, em seu lugar, passaram a ensinar uma certa “Comunicação e Expressão”, pouco importando o que isso significasse conceitualmente em sua grosseira redundância. Na prática, o aluno não precisava mais saber o que era um substantivo; bastava, dizia-se, que soubesse empregá-lo com eficiência e, atenção para a palavra mágica, “criatividade”. As aulas de sintaxe - sim, leitor, a tal “análise sintática”, lembra-se? - cederam espaço à “interpretação de texto”, exercício energúmeno que consiste em submeter o que se leu a perífrases - reescrever o mesmo, mas com excesso de palavras, sempre mais imprecisas. O ensino crítico do português foi assaltado pelo chamado “uso criativo” da língua. Para ser didático: se ela fosse pintura, em vez de ensinar o estudante a ver um quadro, o professor se esforçaria para torná-lo um Rafael ou um Picasso. Se fosse música, em vez de treinar o seu ouvido, tentaria transformá-lo num Mozart ou num Beethoven. Como se vê, era o anúncio de um desastre.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Meu irmão Kierkegaard




 Texto de Luiz Felipe Pondé, Folha de São Paulo (13/06/2011)
Quando você estiver lendo esta coluna, estarei em Copenhague, Dinamarca, terra do filósofo Soren Kierkegaard (1813-1855), pai do existencialismo. Ao falarmos em existencialismo, pensamos em gente como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, tomando vinho em Paris, dizendo que a vida não tem sentido, fumando cigarros Gitanes.
O ancestral é Pascal, francês do século 17, para quem a alma vive numa luta entre o "ennui" (angústia, tédio) e o "divertissement" (divertimento, distração, este, um termo kierkegaardiano).
O filósofo dinamarquês afirma que nós somos "feitos de angústia" devido ao nada que nos constitui e à liberdade infinita que nos assusta.
A ideia é que a existência precede a essência, ou seja, tudo o que constitui nossa vida em termos de significado (a essência) é precedido pelo fato que existimos sem nenhum sentido a priori.
Como as pedras, existimos apenas. A diferença é que vivemos essa falta de sentido como "condenação à liberdade", justamente por sabermos que somos um nada que fala. A liberdade está enraizada tanto na indiferença da pedra, que nos banha a todos, quanto no infinito do nosso espírito diante de um Deus que não precisa de nós.
O filósofo alemão Kant (século 18) se encantava com o fato da existência de duas leis. A primeira, da mecânica newtoniana, por manter os corpos celestes em ordem no universo, e a segunda, a lei moral (para Kant, a moral é passível de ser justificada pela razão), por manter a ordem entre os seres humanos. Eu, que sou uma alma mais sombria e mais cética, me encanto mais com outras duas "leis": o nada que nos constitui (na tradição do filósofo dinamarquês) e o amor de que somos capazes.
Somos um nada que ama. A filosofia da existência é uma educação pela angústia. Uma vez que paramos de mentir sobre nosso vazio e encontramos nossa "verdade", ainda que dolorosa, nos abrimos para uma existência autêntica. Deste "solo da existência" (o nada), tal como afirma o dinamarquês em seu livro "A Repetição", é possível brotar o verdadeiro amor, algo diferente da mera banalidade.
É conhecida sua teoria dos três estágios como modos de enfrentamento desta experiência do nada. O primeiro, o estético, é quando fugimos do nada buscando sensações de prazer. Fracassamos. O segundo, o ético, quando fugimos nos alienando na certeza de uma vida "correta" (pura hipocrisia). Fracassamos. O terceiro, o religioso, quando "saltamos na fé", sem garantias de salvação. Mas existe também o "abismo do amor".
Sua filosofia do amor é menos conhecida do que sua filosofia da angústia e do desespero, mas nem por isso é menos contundente.
Seu livro "As Obras do Amor, Algumas Considerações Cristãs em Forma de Discursos" (ed. Vozes), traduzido pelo querido colega Álvaro Valls, maior especialista no filósofo dinamarquês no Brasil, é um dos livros mais belos que conheço.

A ideia que abre o livro é que o amor "só se conhece pelos frutos". Vê-se assim o caráter misterioso do amor, seguido de sua "visibilidade" apenas prática. Angústia e amor são "virtudes práticas" que demandam coragem. Kierkegaard desconfia profundamente das pessoas que são dadas à felicidade fácil porque, para ele, toda forma de autoconhecimento começa com um profundo entristecimento consigo mesmo.
Numa tradição que reúne Freud, Nietzsche e Dostoiévski (e que se afasta da banalidade contemporânea que busca a felicidade como "lei da alma"), o dinamarquês acredita que o amor pela vida deita raízes na dor e na tristeza, afetos que marcam o encontro consigo mesmo.
Deixo com você, caro leitor, uma de suas pérolas: "Não, o amor sabe tanto quanto qualquer um, ciente de tudo aquilo que a desconfiança sabe, mas sem ser desconfiado; ele sabe tudo o que a experiência sabe, mas ele sabe ao mesmo tempo que o que chamamos de experiência é propriamente aquela mistura de desconfiança e amor... Apenas os espíritos muito confusos e com pouca experiência acham que podem julgar outra pessoa graças ao saber." Infelizes os que nunca amaram. Nunca ter amado é uma forma terrível de ignorância.

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