domingo, 29 de abril de 2012

Reflexões sobre a educação I

Émile-Auguste Chartier (Alain) (1868-1951)

 

 Por Émile-Auguste Chartier (Alain)



Algumas pessoas jogavam Letras, um passatempo conhecido; trata-se de formar palavras com letras esparsas. Essas combinações excitam prodigiosamente a atenção. A grande facilidade dos pequenos problemas de três ou quatro letras leva o espírito a um trabalho muito fatigante; bela ocasião para o ensino dos termos técnicos e da ortografia. Assim, pensava eu, é fácil prender a atenção da criança; façamos para ela uma ponte que vá de seus jogos até às nossas ciências; e que ela se ponha a trabalhar sem saber que trabalha. Depois, durante toda a sua vida, o estudo será um repouso e uma alegria, por causa desse hábito da infância, enquanto que, para a maioria, a lembrança dos estudos é como um suplício. Seguia assim essa ideia encantadora em companhia de Montaigne¹. Mas a sombra de Hegel falou mais alto².

A criança, disse essa Sombra, não gosta de suas alegrias de criança tanto quanto você pensa. Em sua vida imediata, sim, ela é totalmente criança, e contente por ser criança, mas para você, não para ela mesma. Pela reflexão, logo rejeita seu estado de criança: quer tornar-se homem. E nisso é mais séria do eu você, menos criança que você, que se faz de criança. Porque o estado de homem é belo para quem a ele chega com todas as forças da infância. O sono é um prazer de animal, sempre cinzento e algo sombrio, mas nele logo nos perdemos; escorregamos para ele; mergulhamos, sem qualquer retorno a nós mesmos. E isso é o melhor. É todo o prazer da planta e do animal, certamente; é todo o prazer do ser que nada supera, que não se ergue acima de si mesmo. Mas embalar não é instruir.

Ao contrário, disse essa grande Sombra, desejo que exista como que um fosso entre a brincadeira e o estudo. Quê! Aprender a ler e a escrever por meio de jogo de letras? A contar com avelãs, em atividade de símio? Antes temeria que estes grandes segredos não parecessem bastante difíceis, nem bastante majestosos. O idiota se diverte com tudo; ele rói as nossas belas ideias, rumina, zomba. Tenho medo desse selvagem disfarçado de homem. Um pouco de pintura, brincando; algumas notas de música, repentinamente interrompidas, sem medida, sem a seriedade da coisa. Uma conferência sobre o rádio, ou sobre a telegrafia sem fio ou os raios X; a sombra de um esqueleto, uma anedota. Um pouco de dança; um pouco de política, um pouco de religião. O Incognoscível em seios palavras. “Eu sei, compreendi”, diz o idiota. Mais lhe conviria o tédio. Talvez ele o superasse. Mas nesse jogo de letras ele permanece assentado e muito ocupado; sério ao seu modo, e contente consigo mesmo.

Prefiro, disse a Sombra, prefiro na criança este escrúpulo de homem, quando vê que é hora de estudo e que desejamos ainda fazê-la rir. Quero que ela se sinta bem ignorante, bem longe, bem abaixo, bem criancinha por si mesma; que se apoie na ordem humana; que se forme no respeito, porque somos grandes pelo respeito, e não pequenos. Que conceba uma grande ambição, uma grande resolução, por uma grande humildade. Que se discipline e se faça; sempre com esforço, sempre em ascensão. Aprender dificilmente as coisas fáceis. Depois, saltar e gritar, segundo a natureza animal. Progresso, disse a Sombra, por oposições e negações. 



   
¹Alusão à concepção de Michel de Montaigne (1533-1592) expressa nos Ensaios (1582), Liv. I, cap.XXVI, de que o aprendizado deve ser ameno à criança.
(   ² Referência geral à concepção de Hegel (1770-1831) de que a criança não se compraz com a sua própria maneira de ser. Aspira, natural e necessariamente, a ser homem, que constitui a realização da ideia.

 

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A inveja das moscas


Sou uma personalidade atormentada e dada a arroubos. Noites insones me levam a terras distantes onde nossos ancestrais vagam arrancando a vida e seu sentido das pedras. Com o passar dos anos, cada vez mais me encanta a luta desses nossos patriarcas perseguidos pelos elementos naturais, por seus próprios demônios e por deuses de olhos vermelhos cheios de sangue e dentes afiados.

Construímos sonhos de autorrealização profissional, afetiva e material. A expectativa com nossa própria grandeza ocupa grande parte de nossos devaneios.

O sentimento da fragilidade do mundo sempre me perseguiu desde a infância. Se os psicanalistas estiverem certos, e tudo que é primitivo é indelével, esse sentimento constitui minha substância mais íntima. Que inveja eu tenho das moscas!

Livres, voando pelo mundo, sem saber de si mesmas.

Li nas últimas férias a coletânea de ensaios The Best American Essays of the Century, editada por Joyce Carol Oates e Robert Atwan, Houghton Mifflin Company, Boston.

Destaco dois ensaios: TheCrack-Up (a rachadura), de F. Scott Fitzgerald, de 1936 e The Old Stone House (a velha casa de pedra) de Edmund Wilson, de 1933.

Edmund Wilson foi, segundo Paulo Francis, o último grande crítico literário de uma tradição na qual o crítico não se escondia atrás de algum teórico, tipo Blanchot ou Derrida, para repetir o que todo mundo diz e com isso não correr riscos. Wilson enfrentava o autor cara a cara, dizendo o que pensava dele, sem se preocupar com o que a "indústria da crítica acadêmica" diria. A coragem nunca foi um valor na academia, Francis tinha razão.

Nesse ensaio, Wilson fala de uma casa de pedra na qual sua família viveu por muitos anos. Sua família era do tipo de família que aqui chamaríamos de quatrocentona falida. Mãe fria, pai, homem letrado e melancólico, ele, Wilson, parecido com seu pai, e também um bêbado.

Estou convencido de que pessoas sem algum vício terrível permanecem em alguma forma de infância moral. Apenas quem perdeu qualquer esperança de ser virtuoso deveria falar sobre moral. Pessoas sem vícios falando sobre moral é como virgens dando aula de sexo.

Wilson, entre outros parentes, fala de uma tia, infeliz no casamento, obrigada a ser uma mulher normal quando na realidade era uma filósofa schopenhauriana amadora. Segundo ele, ela enfrentou virtuosamente seu fardo criando um sistema filosófico pessoal pessimista e, quando ficou viúva, se mudou para Nova York e gastou seus últimos dias indo a livrarias e vendo teatro. Quando ainda casada, sua tia lia à noite, sobre o fogão, sozinha, em seu único momento de paz.

F. Scott Fitzgerald, autor de "O Grande Gatsby", nesse ensaio descreve a sua maior crise existencial (a rachadura que dá título ao ensaio), que o acometeu por volta dos 50 anos. Escritor famoso, Fitzgerald afirma: "Identifiquei-me com meus próprios objetos de horror e compaixão" e "passei a ter uma atitude trágica em relação à tragédia e melancólica em relação à melancolia". Em síntese, foi inundado por seus próprios objetos literários e se tornou, ele mesmo, um deles. O efeito foi devastador e libertador.

Na abertura, ele define o que entende por uma pessoa inteligente: conseguir viver com duas ideias opostas sobre a vida e não desistir de nenhuma delas.

E exemplifica: saber que não há esperança para nós e ainda assim viver buscando provar o contrário. O resultado seria uma vida combativa em nome da esperança. Uma vida pautada pelo controle de si mesmo e do mundo a sua volta.

Ao final do ensaio, ele volta a definir, agora, o que é, após sua rachadura, o estado natural de um adulto que tem consciência e sensibilidade: infelicidade qualificada (e não banal).

Uma condição com a qual convivemos, mas que ao assumi-la, uma espécie de libertação acontece: em suas palavras, não mais desejar ser um homem bom, não mais ser simpático com o marido de sua prima, nem responder a cartas de escritores jovens medíocres que não deveriam aborrecer os outros. Ser apenas um escritor e não querer agradar a ninguém, nem a si mesmo.


sexta-feira, 20 de abril de 2012

Viva Paulo Freire!



Vocês conhecem alguém que tenha sido alfabetizado pelo método Paulo Freire? Alguma dessas raras criaturas, se é que existem, chegou a demonstrar competência em qualquer área de atividade técnica, científica, artística ou humanística? Nem precisam responder. Todo mundo já sabe que, pelo critério de “pelos frutos os conhecereis”, o célebre Paulo Freire é um ilustre desconhecido.

As técnicas que ele inventou foram aplicadas no Brasil, no Chile, na Guiné-Bissau, em Porto Rico e outros lugares. Não produziram nenhuma redução das taxas de analfabetismo em parte alguma.

Produziram, no entanto, um florescimento espetacular de louvores em todos os partidos e movimentos comunistas do mundo. O homem foi celebrado como gênio, santo e profeta.
Isso foi no começo. A passagem das décadas trouxe, a despeito de todos os amortecedores publicitários, corporativos e partidários, o choque de realidade. Eis algumas das conclusões a que chegaram, por experiência, os colaboradores e admiradores do sr. Freire:

“Não há originalidade no que ele diz, é a mesma conversa de sempre. Sua alternativa à perspectiva global é retórica bolorenta. Ele é um teórico político e ideológico, não um educador.” (John Egerton, “Searching for Freire”, Saturday Review of Education, Abril de 1973.)

“Ele deixa questões básicas sem resposta. Não poderia a ‘conscientização’ ser um outro modo de anestesiar e manipular as massas? Que novos controles sociais, fora os simples verbalismos, serão usados para implementar sua política social? Como Freire concilia a sua ideologia humanista e libertadora com a conclusão lógica da sua pedagogia, a violência da mudança revolucionária?” (David M. Fetterman, “Review of The Politics of Education”, American Anthropologist, Março 1986.)

“[No livro de Freire] não chegamos nem perto dos tais oprimidos. Quem são eles? A definição de Freire parece ser ‘qualquer um que não seja um opressor’. Vagueza, redundâncias, tautologias, repetições sem fim provocam o tédio, não a ação.” (Rozanne Knudson, Resenha da Pedagogy of the Oppressed; Library Journal, Abril, 1971.)

“A ‘conscientização’ é um projeto de indivíduos de classe alta dirigido à população de classe baixa. Somada a essa arrogância vem a irritação recorrente com ‘aquelas pessoas’ que teimosamente recusam a salvação tão benevolentemente oferecida: ‘Como podem ser tão cegas?’” (Peter L. Berger, Pyramids of Sacrifice, Basic Books, 1974.)

“Alguns vêem a ‘conscientização’ quase como uma nova religião e Paulo Freire como o seu sumo sacerdote. Outros a vêem como puro vazio e Paulo Freire como o principal saco de vento.” (David Millwood, “Conscientization and What It's All About”, New Internationalist, Junho de 1974.)

“A Pedagogia do Oprimido não ajuda a entender nem as revoluções nem a educação em geral.” (Wayne J. Urban, “Comments on Paulo Freire”, comunicação apresentada à American Educational Studies Association em Chicago, 23 de Fevereiro de 1972.)

“Sua aparente inabilidade de dar um passo atrás e deixar o estudante vivenciar a intuição crítica nos seus próprios termos reduziu Freire ao papel de um guru ideológico flutuando acima da prática.” (Rolland G. Paulston, “Ways of Seeing Education and Social Change in Latin America”, Latin American Research Review. Vol. 27, No. 3, 1992.)

“Algumas pessoas que trabalharam com Freire estão começando a compreender que os métodos dele tornam possível ser crítico a respeito de tudo, menos desses métodos mesmos.” (Bruce O. Boston, “Paulo Freire”, em Stanley Grabowski, ed., Paulo Freire, Syracuse University Publications in Continuing Education, 1972.)

Outros julgamentos do mesmo teor encontram-se na página de John Ohliger, um dos muitos devotos desiludidos (http://www.bmartin.cc/dissent/documents/Facundo/Ohliger1.html#I).

Não há ali uma única crítica assinada por direitista ou por pessoa alheia às práticas de Freire. Só julgamentos de quem concedeu anos de vida a seguir os ensinamentos da criatura, e viu com seus própios olhos que a pedagogia do oprimido não passava, no fim das contas, de uma opressão da pedagogia.

Não digo isso para criticar a nomeação póstuma desse personagem como “Patrono da Educação Nacional”. Ao contrário: aprovo e aplaudo calorosamente a medida. Ninguém melhor que Paulo Freire pode representar o espírito da educação petista, que deu aos nossos estudantes os últimos lugares nos testes internacionais, tirou nossas universidades da lista das melhores do mundo e reduziu para um tiquinho de nada o número de citações de trabalhos acadêmicos brasileiros em revistas científicas internacionais. Quem poderia ser contra uma decisão tão coerente com as tradições pedagógicas do partido que nos governa? Sugiro até que a cerimônia de homenagem seja presidida pelo ex-ministro da Educação, Fernando Haddad, aquele que escrevia “cabeçário” em vez de “cabeçalho”, e tenha como mestre de cerimônias o principal teórico do Partido dos Trabalhadores, dr. Emir Sader, que escreve “Getúlio” com LH. A não ser que prefiram chamar logo, para alguma dessas funções, a própria presidenta Dilma Roussef, aquela que não conseguia lembrar o título do livro que tanto a havia impressionado na semana anterior, ou o ex-presidente Lula, que não lia livros porque lhe davam dor de cabeça.

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 19 de abril de 2012

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Narcisismo no "Face"



Cuidado! Quem tem muitos amigos no "Face" pode ter uma personalidade narcísica. Personalidade narcísica não é alguém que se ama muito, é alguém muito carente.

Faço parte do que o jornal britânico
The Guardian chama de social media sceptics (céticos em relação às mídias sociais) em um artigo dedicado a pesquisas sobre o lado "sombrio" do Facebook (22/3/2012).

Ser um
social media sceptic significa não crer nas maravilhas das mídias sociais. Elas não mudam o mundo. Aliás, nem acredito na "história", sou daqueles que suspeitam que a humanidade anda em círculos, somando avanços técnicos que respondem aos pavores míticos atávicos: morte, sofrimento, solidão, insegurança, fome, sexo. Fazemos o que podemos diante da opacidade do mundo e do tempo.

As mídias sociais potencializam o que no humano é repetitivo, banal e angustiante: nossa solidão e falta de afeto. Boas qualidades são raras e normalmente são tão tímidas quanto a exposição pública.

E, como dizia o poeta russo Joseph Brodsky (1940-96), falsos sentimentos são comuns nos seres humanos, e quando se tem um número grande deles juntos, a possibilidade de falsos sentimentos aflorarem cresce exponencialmente.

Em 1979, o historiador americano Christopher Lasch (1932-94) publicava seu best-seller acadêmico "A Cultura do Narcisismo", um livro essencial para pensarmos o comportamento no final de século 20. Ali, o autor identificava o traço narcísico de nossa era: carência, adolescência tardia, incapacidade de assumir a paternidade ou maternidade, pavor do envelhecimento, enfim, uma alma ridiculamente infantil num corpo de adulto.

Não estou aqui a menosprezar os medos humanos. Pelo contrário, o medo é meu irmão gêmeo. Estou a dizer que a cultura do narcisismo se fez hegemônica gerando personalidades que buscam o tempo todo ser amadas, reconhecidas, e que, portanto, são incapazes de ver o "outro", apenas exigindo do mundo um amor incondicional.

Segundo a pesquisa da Universidade de Western Illinois (EUA), discutida pelo periódico britânico, "um senso de merecimento de respeito, desejo de manipulação e de tirar vantagens dos outros" marca esses bebês grandes do mundo contemporâneo, que assumem que seus vômitos são significativos o bastante para serem postados no "Face".

A pesquisa envolveu 294 estudantes da universidade em questão, entre 18 e 65 anos, e seus hábitos no "Face". Além do senso de merecimento e desejo de manipulação mencionados acima, são traços "tóxicos" (como diz o artigo) da personalidade narcísica com muitos amigos no "Face" a obsessão com a autoimagem, amizades superficiais, respostas especialmente agressivas a supostas críticas feitas a ela, vidas guiadas por concepções altamente subjetivas de mundo, vaidade doentia, senso de superioridade moral e tendências exibicionistas grandiosas.

Pessoas com tais traços são mais dadas a buscar reconhecimento social do que a reconhecer os outros.

Segundo o periódico britânico, a assistente social Carol Craig, chefe do Centro para Confiança e Bem-estar (meu Deus, que nome horroroso...), disse que os jovens britânicos estão cada vez mais narcisistas e reconhece que há uma tendência da educação infantil hoje em dia, importada dos EUA para o Reino Unido (no Brasil, estamos na mesma...), a educar as crianças cada vez mais para a autoestima.

Cada vez mais plugados e cada vez mais solitários. Na sociedade contemporânea, a solidão é como uma epidemia fora de controle.

O Facebook é a plataforma ideal para autopromoção delirante e inflação do ego via aceitação de um número gigantesco de "amigos" irreais. O dr. Viv Vignoles, catedrático da Universidade de Sussex, no Reino Unido, afirma que, nos EUA, o narcisismo já era marca da juventude desde os anos 80, muito antes do "Face".

Portanto, a "culpa" não é dele. Ele é apenas uma ferramenta do narcisismo generalizado. Suspeito muito mais dos educadores que resolveram que a autoestima é a principal "matéria" da escola.

A educação não deve ser feita para aumentar nossa autoestima, mas para nos ajudar a enfrentar nossa atormentada humanidade.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Páscoa





Duas crianças amarradas. Choravam. Nuas, sentiam frio. As cabeças doíam porque estavam meio abertas por pancadas que recebiam de vez em quando.

O bando se ocupava com o cotidiano. Bater aos pouquinhos na cabeça de suas vítimas era um modo de preparar o cérebro para ser comido. Assim garantiam que estariam macios ao toque dos dentes.
 
Duas mulheres se acariciavam e se lambiam uma a outra, enquanto o filho de uma tentava em vão penetrar uma delas.

Três homens chegavam ao lugar onde viviam e traziam consigo outras duas crianças, duas meninas arrastadas pelo chão.

Gritaria e felicidade. Precisavam de quatro crianças. O jantar estava próximo. A fome era um desconforto profundo. Eles se perguntavam, às vezes, o porquê de sentirem fome. Não seria mais fácil a vida tranquila das pedras? Quando aquela dor invadia suas barrigas, as boas sensações desapareciam em meio a vontade furiosa de mastigar alguma coisa.

Sentiam uma estranha sensação de que o céu acima era poderoso, assim como a água que despencava dele. Olhavam horas para o céu, mas nenhuma voz saia daquela imensidão vazia.

Uma menina chupava os dedos sujos do próprio sangue que escorria entre suas pernas.
 
Outras crianças assistiam àquele gesto que já se tornara como que um hábito. Meninas faziam aquilo enquanto o velho estranho, dado a gritar, andava ao seu redor fazendo gestos com as mãos, que repetia o gesto da menina.

Em círculos, outras meninas começam a repetir o gesto da primeira, até que todas estivessem sangrando. Meninos, parados, devorados por um interesse estranho naquilo tudo, de vez em quando, corriam até o círculo das meninas e tentavam lamber o sangue delas também. Pedras jogadas por mulheres mais velhas expulsavam os meninos dali.

De vez em quando, meninos e meninas se lançavam contra as duas crianças amarradas, tentando cortar pedaços delas, mas os mais velhos as seguravam. Eles precisavam entender que apenas quando caísse a escuridão do céu eles comeriam uma parte delas, e, mesmo assim, sendo aquele dia um dia especial -porque comeriam a carne de animais iguais a eles-, a ceia demoraria mais do que o normal porque a morte seria lenta, a fim de garantir que a carne do cérebro estaria macia.
 
Um pouco distante da fogueira grande, mulheres preparavam uma placa de pedra e a lavavam com sangue de animais mortos no dia anterior. Os três homens colocaram as duas meninas junto às outras duas crianças. Foram buscar água e lavaram as mãos, depois se aproximaram do velho estranho dado a gritar. O velho fez um gesto com a cabeça e deu para eles três pedaços de madeira pintados de uma tinta amarelada.

Os três homens voltaram para as quatro crianças amarradas, pintaram elas com a mesma tinta e começaram a bater na cabeça das quatro, uma de cada vez, e cada vez um deles, ritmados e numa perfeição harmônica que fez todos ali pararem para assistir.

Silêncio absoluto. Fora os gemidos das quatro vítimas. As duas primeiras crianças já não choravam. Enquanto os três continuavam a bater ritmadamente na cabeça das duas crianças recém-chegadas, quatro mulheres se puseram a cortar o pescoço das duas primeiras, enquanto outras mulheres colhiam o sangue que jorrava do pescoço em cascos de frutas arredondados.

Já dentro da noite, todos permaneciam em silêncio enquanto as mulheres terminavam de cortar o pescoço das duas últimas e escorrer o sangue. Em seguida, uma velha munida de uma pedra muito fina, arrancou o cérebro das quatro cabeças pela base do crânio, numa destreza maravilhosa. Todos esboçavam um sorriso de emoção diante daquela habilidade.

Ao final, todos ao redor da pedra comeram um pedaço do cérebro das crianças (começando pelos mais velhos até os mais novos, mesmo os bebês), primeiro das duas mortas, depois das duas últimas. Beberam o sangue das quatro.

Os homens pegaram os quatros corpos sem cabeça e enterraram a distância de suas moradias. A velha colocou as quatro cabeças em linha reta por sobre uma pedra arredonda, e lá ficou por horas, como que meditando sobre o sentido da vida.

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