Nunca me esqueço de uma conversa que tive, há tempos, com o Plínio
Marcos, o autor mais representado do Brasil. Hoje, é difícil, senão impossível,
descobrir um teatro que não tenha o seu nome, na frente, como uma manchete. Mas
eis o que me disse o Plínio Marcos: — “Eu queria representar no Maracanã, para
200 mil pessoas!”.
(Digo Maracanã, e com que remorso o digo. O Maracanã é muito mais Mario
Filho do que Maracanã.) Mas ao ouvir falar em 200 mil pessoas, concordo: — “Boa
plateia, boa plateia!”. Era uma noite fria. O hálito do mar gelava os
edifícios. E, então, o nosso dramaturgo exaltou-se de vez. Sonhava aos berros:
— “A minha peça seria a partida principal. E o Fla-Flu, a preliminar”. A
hipótese o fascinou. Soluçava: — “O Fla-Flu como preliminar da minha peça!”.
Uma semana depois, vou a um sarau de grã-finos. Súbito, um dos
presentes, já bêbedo, começou a falar em morte e, em seguida, na própria morte.
Dizia o pau-d’água de luxo que não há ninguém mais exibicionista do que o
defunto. O morto quer plateia. E o ideal seria que a nossa morte fosse preliminar
do Fla-Flu. E o sujeito, em vez de morrer para meia dúzia de familiares e
vizinhos, teria um velório de 200 mil pessoas.
Foi aí que percebi, subitamente, toda a verdade. A nossa utopia mais
fascinante é a plateia do Fla-Flu, de Flamengo x Vasco. Sim, o homem moderno
gostaria ser épico, sublime, obsceno e romântico para multidões gigantescas. E
já me ocorre uma objeção contra a preliminar do Fla-Flu. Ei-la: — não há sacadas
no Estádio Mario Filho. A superioridade das últimas passeatas sobre as massas
do futebol está, exatamente, nas sacadas.
Se não entendem o que estou dizendo, passo a explicar. Hoje, não há mais
terça-feira gorda e, repito, a terça-feira gorda morreu até o último vestígio.
Mas houve um tempo em que os préstitos paravam a cidade. As pessoas alugavam
sacadas para ver as grandes sociedades. Ao passo que, em nosso tempo, as
sacadas deixaram de ter uma função estritamente contemplativa e assumiram o seu
destino histórico (desculpem esse tom de editorial do Jornal do Brasil).
Sim, as sacadas foram, nas recentes passeatas, a grande revelação. Vocês
se lembram. Embaixo, o grande desfile estudantil. Imagino que tenha sido uma
surpresa até para os jovens. E, de repente, sem aviso prévio, as sacadas
passaram a ter uma ação política, ideológica, libertária como as barricadas.
Elas começaram a pensar, a ousar ideias, gestos, frases, sentimentos, berros. Instantaneamente,
todos perceberam que as sacadas eram barricadas aéreas, aladas, superpostas. Lá
de cima, chovia papel picado, e mais, listas telefônicas, processos, cadeiras.
À distância, tinha-se a impressão visual de que o papel picado era neve de
Papai Noel. Nunca me esqueço de um décimo andar que começou a nevar cinzeiros e
até baldes. De mais a mais, as sacadas aplaudem como as frisas e os camarotes
da ópera. E os que passam cá embaixo simplesmente passam, e não fazem mais nada
senão passar — têm uma sensação de ópera sem lustre, sem torrinhas, sem libreto
e sem cafezinhos nos entreatos.
E, de repente, a sacada passou a ter um papel decisivo nas passeatas. É
uma excitação a mais, uma espécie de afrodisíaco ideológico, sei lá. Ou por
outra: — não se trata bem de ideologia. A sacada traz um tremendo apelo à nossa
vaidade. Pode parecer um sentimento menor, quase vil. Nem tanto, nem tanto. A
vaidade está inserida na complexidade dos santos, dos heróis, dos mártires. São
centenas, milhares de sacadas que pendem sobre nós e atiram sobre nós listas
telefônicas. Visualizem a cena: — o sujeito vem passando. E, súbito, cai-lhe no
crânio, baixando do 12º andar, um cinzeiro. O sujeito há de sentir-se perfeitamente
sublime.
Mas falo, falo e não digo o essencial. Hoje, queria pingar duas palavras
sobre a inteligência nas passeatas. Reparem: — qualquer um pode falhar, menos o
intelectual. Não houve chuva em nenhuma marcha. Mas, fizesse um mau tempo de
quinto ato do Rigoletto e já estaria ele, firme, inarredável, inexpugnável. Mas
escrevi “intelectual” e cabe uma especificação: — falo do escritor, do
romancista, do ensaísta e, numa palavra, daquele que depende sempre de um
leitor. Não se pode pluralizar o leitor. Mesmo o best-seller de 500 mil exemplares
é lido por um, fatalmente por um. Por outro lado, o leitor é o ausente, o
invisível, o intangível. Portanto, o romancista tem uma inconsolável nostalgia
de massas.
Vimos que, no sarau de grã-finos, um pau-d’água queria fazer, da própria
morte, a preliminar do Fla-Flu. Duzentas mil pessoas haviam de recolher o seu
último suspiro. O dramaturgo Plínio Marcos gostaria de representar no
ex-Maracanã para as mesmas 200 mil pessoas. E ninguém escapa à fascinação
numérica da multidão. Mas o escritor não tem possibilidade nenhuma de massas. Bem
que gostaria de ser lido, no Estádio Mario Filho, por 200 mil pessoas ao mesmo tempo.
Ora, a passeata o desagrava de sua humilhante solidão. Fui com Raul
Brandão, o pintor de igrejas e grã-finas, ver o desfile. E, súbito, o Raul
crispa a mão no meu braço: — “Olha lá! Ali”. Virei-me, e confesso o meu
deslumbramento. Primeiro, vi a tabuleta: — “Intelectuais”. Sempre tive a impressão
injusta, a impressão iníqua de que há, na cidade, uns sete intelectuais. Ou
nove. Vá lá, dez. E eis que, no espaço reservado à “Inteligência”, se
concentrava uma multidão nunca vista. Jamais me ocorrera a hipótese paranoica
de que o Brasil tivesse tantos intelectuais. Por um momento, eu e o Raul
Brandão ficamos só olhando, esbugalhados de assombro. E admiramos a disciplina
daqueles finos espíritos. Ninguém se mexia. Todos quietinhos, como se
estivessem engradados.
Não larguei mais os intelectuais. O Raul Brandão tremia: — “Viste como o
Brasil é inteligente?”. De fato, a evidência numérica estava a demonstrar que somos
uma potência espiritual de primeiríssima. Já começava a marcha. Eu e o Raul
Brandão fomos ao lado de um romancista. Caminhamos até à rua do Ouvidor de olho
no romancista. E em outros romancistas, e ensaístas, e poetas, e cronistas, e
sociólogos (cada vez me convencia mais da insuportável inteligência do Brasil).
Cada intelectual marchava como se fosse, no mínimo, um Proust, um Joyce. Volto
ao primeiro romancista. Livrara-se da tirania, numericamente humilhante, de um
único leitor. Tinha sua plateia de Fla-Flu. E estava magnetizado pelas sacadas.
Um catálogo de telefone, atirado de um 13° andar, podia rachar-lhe o crânio.
Morreria feliz. E como transpirava de glória e de esforço físico. Vi o suor
pingando e, repito, o suor chorando na sua cara gorda.
[12/7/1968]
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