terça-feira, 25 de junho de 2013

VICO VIVO




A ESTÁTUA do filósofo Giambattista Vico ergue-se na Villa  Nazionale, o parque municipal de Nápoles. Perto do mar, a figura de pedra, corroída pelo tempo, olha o panorama do Posilippo, da ilha de Capri, do Vesúvio, ao pé do qual a cidade submergida de Pompéia dorme: paisagem essencialmente histórica, onde os gregos, os romanos, os longobardos, os árabes, os alemães, os franceses, os espanhóis deixaram os seus traços; paisagem que sonha com o passado, e com um futuro incerto. Como a história, também aquela estátua, na penumbra das árvores velhíssimas, parece insensível aos sofrimentos e sonhos humanos; contempla com o olhar frio de pedra as crianças inocentes que brincam ao pé do monumento, que não sabem quem foi aquele que lhes traçou, a elas também, os implacáveis destinos futuros.


Vico está bem vivo entre nós. Pela doutrina, e por um problema premente que permanece conosco.

Viveu em Nápoles, de 1668 até 1744, obscuro professor de retórica, historiógrafo miseravelmente pago do rei Carlos III, preceptor em casas de famílias nobres, onde tentou melhorar os vencimentos magros escrevendo poemas de ocasião para aniversários natalícios e núpcias. Escreveu muito, e escreveu, entre outros, o livro Principii di una Scienza Nuova intorno alla natura delle nazioni. Com esse livro, criou, na verdade, uma "Ciência Nova": a filosofia da história. Foi ele quem primeiro empreendeu estabelecer leis históricas, que permitem compreender o sentido do passado e pressentir os destinos do futuro. Os pequenos resultados acessórios desse trabalho foram a ciência histórica do direito, a sociologia comparada, a filologia e estética históricas e psicológicas. Vico passou despercebido; a compreensão dos contemporâneos napolitanos limitava-se a dúvidas e discussões acerca da sua ortodoxia católica, que feriram o professor: na maior miséria, nunca perdeu a fé. Mas foi compreendido só pelos descrentes. Influiu poderosamente na filosofia da história romana de Montesquieu, no espírito coletivista e "populista" de Herder, dos românticos, de Michelet, nas concepções de Comte, de Marx, de Sorel e de Max Weber, e até na vulgarização de Spengler. Enfim, a doutrina de Vico tornou-se uma base evidente e quase natural da nossa estrutura espiritual, e o criador dessa doutrina caiu num olvido glorioso, onde Benedetto Croce o redescobriu.

Todos os problemas viquianos estão resolvidos no livro estupendo que Croce lhe dedicou, com exceção dum único problema que parece puramente histórico, e que é o problema dos nossos dias presentes: como foi possível que alguém escrevesse em 1725 a Scienza Nuova. Era o século XVIII, otimista, progressista e intimamente a-histórico, anti-histórico; a época em que as ciências naturais e matemáticas começavam a marcha triunfal que hoje termina com as vitórias terríveis da técnica. Foi escrito, aquele livro, na Nápoles estreita de então, cidade dos inquisidores espanhóis e da erudição sufocadora dos antiquários, jurisconsultos e gramáticos. O problema - como pôde a Scienza Nuova nascer em meio ao choque desses dois mundos, para pertencer a um terceiro mundo, não nascido ainda - parece um problema histórico. Mas é, para nós outros que estamos vivendo a queda apocalíptica do nosso mundo e buscando o nosso caminho nas trevas, o nosso problema presente.

Giambattista Vico era um homem magro, sempre doente, curvado pelas noites intermináveis à mesa dos estudos, tossindo na poeira dos inúmeros livros devorados. Vestia o traje do seu tempo, peruca de professor, batina semiclerical. A ciência de Vico está vestida do mesmo traje contemporâneo. Pertence às especulações barrocas sobre a origem das nações e de suas línguas após o dilúvio, especulações sobre Adão e Noé, sobre os ciclopes e os heróis; ciência em que as histórias da Bíblia e da Antiguidade se misturam numa erudição extensíssima, gravíssima, às vezes divertida e não raramente doida.

Quando - expõe Vico - as águas do dilúvio desapareceram, deixaram os homens sobreviventes em profundíssima barbaria, com exceção dos hebreus, privilegiados pela Revelação. Os outros erravam "na grande floresta da terra", bestiais, estúpidos, brutos e brutais. Espantados pelo trovão, concebem os elementos duma religião, duma "cultura teológica", representada por sacerdotes que falam por mitos aos leigos e que escrevem em hieróglifos: é  "época dos deuses". Assim, esses bárbaros, um pouco civilizados, conseguem subjugar outros bárbaros inferiores e os governam, como uma elite. Essa elite de guerreiros liberta-se da tutela dos sacerdotes, funda cidades, faz guerras; escreve em caracteres figurativos e fala em língua metafórica, tem Homero como poeta: é a "época dos heróis". Enfim, os subjugados vencem aos senhores, restabelecem por um "direito natural" a democracia, escrevem em caracteres alfabéticos, criam a historiografia e as ciências: é a "época dos homens". Mas a democracia corrompe-se, ditaduras lutam com anarquias, os povos recaem na barbaridade das origens, e, numa volta, num "ricorso", recomeça o ciclo das épocas dos deuses, dos heróis e dos homens.

A Scienza Nuova é um grande poema barroco. Como em toda a poesia barroca, um pessimismo agudo junta-se à fé inabalável na providência celeste. Portanto, o poema histórico de Vico não pode denegar a sua descendência da teoria cíclica da história do pagão Políbio. Todas as teorias cíclicas da história, de Políbio até Spengler, opõem-se ao espírito do cristianismo, que não conhece mais que uma única revelação e uma única encarnação de Deus e, por isso, só admite uma evolução retilínea, da criação até o juízo final. Eis a razão por que Vico não sabe como situar no ciclo histórico a história
única do povo hebraico e da sua sucessora, a Igreja. Originaram-se daqui as discussões contemporâneas sobre a ortodoxia de Vico, hoje renovadas entre Croce e Chiocchetti. Mas a ortodoxia sincera que Vico sempre professou parece residir em sua fé na providência divina: ela vence o seu pessimismo e fá-lo achar um sentido na história.

Na aparência, Vico vê a história como uma força que rege, com poder absoluto, os destinos dos homens. Mas como o poder dum monarca constitucional está limitado pelas leis, assim o poder da história, em Vico, está limitado pela lei histórica dos ciclos que se repetem. O poder da história, em Vico, é só relativo. Criou o relativismo histórico. É estranho como frisa a mudança da escrita com os diferentes estádios da civilização jurídica e material. É que Vico reconhece a interdependência de todas as regiões da atividade humana - direito, política, religião, civilização material e espiritual: é possível interpretá-lo no sentido da dialética idealista de Hegel e da dialética materialista de Marx. É independente dessas possibilidades interpretatórias a primeira conseqüência que Vico tirou do conceito da interdependência: Homero é o poeta da aurora da humanidade. Todos os séculos precedentes tomavam Homero e Virgílio ingenuamente como pares; Vico reconhece em Homero o poeta épico da idade heróica, e em Virgílio o poeta épico dum estado mais velho e mais refinado da civilização. Com isso, criou Vico a estética histórica e analítica, que se desenvolveu até Sainte-Beuve e Taine. Vico discute, um século antes de Wolf, a parte da poesia popular, anônima, na elaboração das epopeias homéricas. Reconhece o papel do "espírito do povo" nacional e do "espírito dominante do tempo" na evolução das instituições humanas, mesmo no direito, que passou, até Vico, por invariável. Põe termo à identificação ingênua do direito romano com o direito natural, cria a ciência histórica do direito, reconhece a relatividade de toda ordem jurídica, as bases sociais do direito, a significação histórica das lutas sociais, a significação revolucionária da monarquia absoluta na luta da burguesia contra o feudalismo, a relatividade de qualquer ordem política e social, a relatividade de toda a nossa civilização. É, no ano de 1725, uma maravilha.

Vico é o criador do historicismo. Criou esta atitude científica que hoje perece, diante de um novo dogmatismo. Vico predisse-o: percorremos as épocas dos deuses, dos heróis e dos homens, e estamos voltando, agora, à barbaria. E é estupendo, isto. O pobre professor napolitano do tempo barroco previu o nosso problema. Estava perplexo diante do espetáculo da história, e a sua perplexidade é a nossa confusão. O problema de Vico é o nosso problema.

Não se trata da justeza e exatidão das soluções viquianas, que, conforme o relativismo do mestre, serão sempre discutíveis. Num certo nível, todas as soluções se tornam indiferentes, e permanece, como decisiva, a atitude espiritual. Trata-se, para nós outros, de reencontrar a possibilidade da atitude viquiana em face do fim de um ciclo histórico. Trata-se de vencer a perplexidade pela visão superior. Há, nisso, o nosso "problema Vico".

Um problema está, de início, resolvido, se está bem colocado. Para resolver o problema Vico, basta colocá-lo no seu tempo e no seu espaço. É o próprio método histórico de Vico, ou, se o preferem, o processo de Balzac de fazer-nos ver primeiro o país, depois a cidade, depois a rua, depois a casa e, enfim, o quarto, onde o drama se passa.

O grande teatro do mundo viquiano é aquilo a que Paul Hazard chamou La crise de la conscience européenne. O livro fundamental de Hazard traz o subtítulo De 1680 a 1715 e marca, com isso, exatamente o tempo em que o espírito de Vico se formou. A grande discussão literária desse tempo é a comparação apaixonada entre os poetas e escritores da Antiguidade e os contemporâneos: a "Querelle des Anciens et des Modernes". Toda época é uma "querelle des anciens et des modernes", com uma nítida preferência pelos modernos, uma crise terrível das consciências que cria uma nova época. Novum Organon e Instauratio Magna chamam-se os livros de Bacon, que Vico leu e releu com um misto de curiosidade e medo. "A Antiguidade teve tudo" - diz Vico - "só não teve um Bacon." Reconhece a nova época das ciências naturais, matemáticas, práticas, técnicas. Para Galilei, "la filosofia è scritta nel libro grandissimo della natura in lingua matematica", incompreensível aos antiquários, jurisconsultos e filólogos da velha estirpe; e para Bacon, "knowledge is power", "saber é poder", o que é inconcebível aos velhos professores e eclesiásticos, sufocados na miséria. Gassendi acha na Antiguidade o que nenhum antiquário ousara achar: o atomismo materialístico de Epicuro e Lucrécio; e Boyle transformá-lo-á em ciência nova da química. O mundo transformase em máquina gigantesca, como as "máquinas animadas" da psicologia de Descartes, que excitou a oposição vivíssima de Vico. Está regida, esta máquina mundial, pelas leis matemáticas de Newton, às quais Vico opõe as suas leis históricas. Ficam sendo essas leis matemáticas a última coisa certa e indubitável no mundo. Todo o restante saber humano, tão caro aos antiquários namorados da Antiguidade, sucumbe à crítica cética, incisiva, implacável, de Pierre Bayle, que dissolve em lendas e fraudes todas essas histórias amadas. A própria Bíblia é irreverentemente criticada pelo atrevido oratoriano Richard Simon, e os deístas ingleses tiram conclusões inauditas, contestam os milagres, a Revelação e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os demolidores das crenças religiosas não param, naturalmente, diante das crenças políticas: o "direito natural" serve-lhes para dissolver o direito positivo, sobre o qual assentam todos os poderes; o braço jurídico de Grotius arma o absolutismo totalitário de Hobbes e, do mesmo modo, o liberalismo de Spinoza. Seguir-se-ão, nesse caminho, as irreverências de Voltaire e Diderot, as proclamações teoréticas de Rousseau e práticas de Franklin, inventor do pára-raios e da República americana, aquele Franklin que "eripuit coelo fulmen sceptrumque tyrannis". Seguir-se-á a Revolução, e o último ato chamar-se-á Napoleão. É o fim da velha Europa.

A cidade de Nápoles, do século XVIII, ocupa no palco desse grande teatro mundial o último lugar. Está à margem do mundo civilizado. Está sonolenta, no ar espesso e pouco respirável da decadência italiana, sob a pressão atenuada, e entretanto implacável, do governo espanhol e da Inquisição espanhola. Lá não há crises de consciência nem novos mundos. Subsiste a erudição barroca, escolástica, antiquária. As obras mais admiradas das academias eruditas chamam-se Antiquitates e Thesauri, em inumeráveis volumes, vestidos de couro de porco e por isso impenetráveis às influências do tempo lá fora. Chamam-se os homens, uns aos outros, "dottissimo", "eruditissimo", "latinissimo". Um deles, um abade napolitano, é chamado "uomo di una immensa erudizione greca, latina e toscana in tutte le spezie del sapere umano e divino", e é assim chamado pelo seu admirador humilde Giambattista Vico, que escreveu, por seu lado, um livro com o título precioso De antiquissima Italorum sapientia.

E o último lugar naquela cidade erudita e sonolenta é o pobre gabinete de estudos do miserável professor de retórica e autor de poemas de ocasião, que lê, noturnamente e clandestinamente, os livros proibidos de Bacon, Descartes e Spinoza.

O pobre professor, na miséria, doente, envelhecido antes do tempo, fica perplexo: sente a queda do mundo que era, afinal, o seu mundo também. Está desesperado. Como salvar os bens mais sagrados? Como reage o seu mundo contra o ataque bárbaro? Parece-lhe que esse mundo de teólogos, filólogos e jurisconsultos se tornou um hospital de doidos. Provam eles, com eruditíssimas analogias, tiradas da história, e com doidíssimas profecias, tiradas da superstição, que aquilo que aconteceu não aconteceu e não acontecerá nunca. Resistem, impotentes, com anátemas e exorcismos, e observam, tremendo, como, em torno deles, um após outro apostata e se submete servilmente aos novos senhores.

Giambattista Vico não amaldiçoa, não treme e não se submete. Lê Platão; lê Políbio e Tácito. Lê as histórias do reino decadente dos homens e do reino imperecível das idéias. Está buscando o sentido superior atrás do absurdo da catástrofe. Olha o espetáculo histórico da humanidade, como, hoje, a sua estátua olha a paisagem milenária, o mar eterno e o Vesúvio, ao pé do qual a cidade submergida dorme.

Vico não pode acreditar no progressismo ingênuo e alegre do seu tempo. Vico é o primeiro para quem a decadência não é um assunto de sermão moralizante, mas um problema da história. Não há sempre progressos, de modo nenhum; há também regressos terríveis, os "ricorsi" da doutrina viquiana. Por trás da história agonizante dos últimos romanos, no próprio domínio da erudição "dottissima" e "latinissima", busca um modelo de história, que valha para todos os povos e épocas, uma "storia ideal eterna". Tira das histórias humanas de Políbio e Tácito a história real platônica. Chega à conclusão de que a sujeição e a resistência são igualmente duvidosas. Qualquer coisa morre, qualquer coisa nasce. Resta saber o que morrerá e o que continuará do velho mundo, e o que passa e o que fica dos novos mundos. Para distinguir - "distinguo", empresabem escolástica -, usa da erudição antiquária do velho mundo e do método científico do novo. Como os naturalistas, está buscando "leis". Acha a lei da história.

Vico ficou perplexo diante do espetáculo histórico do seu tempo, como nós outros ficamos perplexos diante da catástrofe do nosso tempo. Hoje, também, os contemporâneos enganam-se em profecias doidíssimas e em analogias históricas sutilíssimas, para provar o improvável; tiram as conclusões do anátema furioso ou da sujeição servil. Mas a atitude de Vico foi superior. As suas profecias compreendem o passado, as suas analogias iluminam o futuro. Ele sabe que alguma coisa do velho deve, irremediavelmente, perecer, e que alguma coisa do novo, mas felizmente bem pouco, deve ficar. É sempre assim, nas revoluções. Resta saber onde está a fronteira. Traçar a fronteira, eis o dever do intelectual. A mão do velho professor treme, consciente da responsabilidade. Mas não tem medo; pois o seu pessimismo crente sabe da caducidade de tudo o que é. Não tem medo dos poderes, nem dos velhos nem dos novos. Uns e outros, sujeita-os ele ao moinho infernal e inevitável dos seus "ricorsi". Todos eles morrem, voltam, e morrem ainda uma vez. E "plus ça change, plus c'est la même chose".

Se os contemporâneos houvessem compreendido Vico, nenhum dos partidos em luta teria ficado satisfeito. Vico poderia dizer, com Valéry: "Je ne suis ni de droite ni de gauche." Num tempo em que a gente é interrogado, em cada esquina, sobre a que partido pertence, Vico teria tido a coragem de passar sem ouvir a pergunta. Não teria temido o campo de concentração, pois já estava dentro dele, nem o ostracismo, já que o espírito superior o merece. Passaria por um pessimista excessivo, porque esperava auroras que ainda não resplandeceram. Submerge-se num passado que se foi, e num futuro que está por vir, pois compreende mais profundamente do que os outros o presente. Por isso mesmo, parece insensível como uma pedra, como a pedra corroída do seu monumento que olha a paisagem histórica, rodeado de crianças inocentes que brincam e não sabem quem era aquele que lhes traçou, a elas também, os implacáveis destinos do futuro.

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