segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Uma vida para doentes mentais




Por Luiz Felipe Pondé

"The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity"
(Willian Butler Yeats, The Seconde Coming )


Vivemos uma vida para doentes mentais. A Romênia já nos deu Cioran, Eliade, Ionesco. Agora nos dá Matéi Visniec, e a É Realizações traduziu várias de suas peças.

Entre elas, "A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais" nos dá a conhecer um medíocre escritor, convidado a contar a história do comunismo a doentes mentais dias antes da morte de Stálin.

Mas, para além do aspecto específico de uma reflexão sobre a conhecida praga do marxismo, chama atenção a reflexão sobre o mal que o autor faz em suas obras, principalmente na face contemporânea e histórica.

Os romenos são grandes "filósofos do mal". Tenho um profundo preconceito por quem acha que não existe o mal. Este tipo de antropólogo de boutique que confunde relativismo cultural com discussão moral séria.

Segundo o que nos dizia Cioran, na Romênia, ninguém se dava ao luxo de suspeitar da existência do mal, porque o fatalismo pessimista daquele povo era por demais "empírico": séculos de violência.

Segundo o autor, o mal em sistemas totalitários é fácil de ser identificado: a perda da liberdade, da privacidade, do horizonte, enfim, do tônus da vontade. Mas, na França em que vive desde seu exílio em 1987, o mal não é tão fácil de ser identificado. Para Visniec, aquilo que as ditaduras marxistas não conseguiram realizar plenamente, a formatação do homem para a condição de gado ou de doente mental, a "liberdade de consumo" das democracias ocidentais estão conseguindo. Este é o "nosso mal".

Como o leitor bem sabe, suspeito de toda crítica à sociedade de mercado quando feita por alguém que supõe conhecer uma melhor forma de vida e que afirma que esta melhor forma passa pelas ideias idiotas que alimenta em sua cabecinha intelectualmente provinciana e autoritária. Mas este não é o caso de Visniec.

Tendo vivido sob o regime totalitário marxista, ele carrega a marca de quem conheceu o mal na intimidade que só a forma banal do cotidiano traz.

Para as sociedade ocidentais funcionarem, temos que comprar. Para comprar no nível que a máquina econômica nos pede, temos que, mais do que comprar, consumir sempre e cada vez mais. Portanto, ao consumirmos "livremente" e com alegria, somos o gado pacificado que os regimes marxistas tentaram criar e não conseguiram. Um cidadão responsável neste mundo afirma sua integridade pagando a conta do Visa em dia.

Só alguém sem alma pode ver um shopping center no fim de semana e não ter vontade de vomitar. Um certo mal-estar com relação à sociedade de consumo é necessário se você quiser manter sua saúde mental em dia. A sociedade que consome sem um mínimo de mal-estar é uma sociedade de doentes mentais.

O problema é que não conhecemos nenhuma experiência histórica real na qual a liberdade política tenha sobrevivido ao extermínio da liberdade de iniciativa econômica.

Por outro lado, a vida humana é precária e tudo tem um custo real. Não conhecemos nenhuma forma de criar ciência, conforto, técnica, direitos humanos sem o uso de dinheiro. E assim voltamos ao consumo: o consumo garante a sobrevivência da economia no nível exigido pelo nosso desejo de conforto, ciência, técnica, direitos humanos.

Visniec se choca com uma Europa que tudo que parece querer é comprar. O Leste Europeu, quando ficou livre, gritou "Prada!". A liberdade conquistada foi para ir ao shopping no fim de semana e comprar toda essa gama de lixo que se compra, com a "boca cheia de dentes esperando a morte chegar...".

Nenhum intelectual parece entender que somos banais como doentes mentais.

Visniec pensa que temos que buscar novas utopias. O interessante é lembrar que a felicidade representada pelo "sou livre para comprar" também foi uma utopia na Europa. O euro é o nome dessa utopia.

Melhor abrirmos mão da ideia de utopia. Quanto mais rápido desistirmos de um mundo melhor, mais rápido perceberemos que a consciência, de fato, é um ônus.

E também, como dizia Yeats, "os melhores não têm convicções enquanto que os piores estão sempre cheios de intensidade passional". O desafio hoje é pensar sem utopias.
 

The Second Coming (A Segunda Vinda)



Um Poema de Willian Butler Yeats



THE SECOND COMING

TURNING and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Surely some revelation is at hand;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of Spiritus Mundi

Troubles my sight: somewhere in sands of the desert
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Reel shadows of the indignant desert birds.
The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?



Tradução: 


A SEGUNDA VINDA

GIRANDO e girando na espiral que se amplia
O falcão não consegue ouvir o falcoeiro;
As coisas dissolvem-se; o centro não segura;
A mera anarquia é dissipada para o mundo,
A maré escura de sangue é perdida, e em qualquer lugar
A cerimónia da inocência se afunda;
Aos melhores lhes falta toda a convicção, enquanto os piores
Estão plenos de intensidade apaixonada.

Certamente alguma revelação estará à mão;
Certamente A Segunda Vinda estará à mão.
A Segunda Vinda! Mal saem estas palavras
e uma larga imagem vinda do Spiritus Mundi

Perturba a minha visão: algures nas areias do deserto
Uma forma com corpo leonino e cabeça de homem,
Um olhar fixo em branco e impiedoso como o sol,
Faz mover-lhe as coxas lentas, enquanto sobre ela
Oscilam sombras de pássaros indignados do deserto.
A escuridão cai de novo; mas agora sei
Que vinte séculos de um sono pedregroso
Se precipitaram no pesadelo por um berço que embala.
E qual besta em fúria, a sua hora vem por fim,
Arrastar-se-á até Belém para nascer? 


Tradução de Pedro Calouste
 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A campanha antitabagista e o estado totalitário





Sempre detestei a fumaça de cigarro, talvez por ter sido asmático quando criança. Por isso, comemorei a lei anti-fumo em lugares fechados.

Hoje, no entanto, vejo que a batalha contra o tabagismo foi longe demais: tornou-se uma campanha alarmista, moralista e mentirosa.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O Inferno Lírico de Badou Sarcass X



Eu, Badou Sarcass, anarquicamente único,
Religiosamente ateu...
Vivo como se estivesse às vésperas da morte,
Ou talvez, da vida plena.
Eu, amante do demônio,
No qual não acredito nem um pouco.

sábado, 4 de agosto de 2012

Nada a declarar



No inverno de 1077, o imperador Henrique IV fez a peregrinação a Canossa, curvando-se perante o papa Gregório VII, que o excomungara. Quase um milênio depois, Lula conheceu a sua Canossa, peregrinando com Fernando Haddad a tiracolo até o jardim da mansão de Paulo Maluf, que expôs publicamente sua troca de afagos com a dupla petista. O cargo federal entregue por Dilma Rousseff a um protegido de Maluf não foi o preço, mas apenas a parcela de superfaturamento cobrada pelo minuto e meio de tempo de TV que o PP vendeu ao candidato lulista à Prefeitura de São Paulo. Conhecedor do valor das obsessões, Maluf impôs a Lula a quitação da dívida por um gesto de humilhação maior que o experimentado pelo soberano do Sacro Império: o papa, afinal, dispunha de poder incomparavelmente superior ao do fugitivo da Interpol.

Luiza Erundina suportaria a aliança com o PP, mas não tolerou a "forma" - a simbologia - que cercou o compromisso. Ela se retirou da chapa à Prefeitura e acusou Lula de uma traição "a princípios". É um recurso de autoilusão, tão patético quanto suas declarações anteriores, que invocavam a "luta pelo socialismo" para justificar sua parceria com Haddad. O "princípio" exclusivo de Lula são os interesses de seu sistema de poder. O lulismo já celebrou Jader Barbalho, José Sarney e Fernando Collor: o congraçamento com Maluf se inscreve numa linha de coerência e só pode surpreender observadores que se ausentaram do planeta durante a última década.

Antonio Donato, coordenador da campanha de Haddad, reagiu ao episódio criticando uma suposta incoerência de Erundina, não de Lula: "Quem quer mudar o Brasil se preocupa com o conteúdo, e não com a forma". O seu "realismo", difundido entre os dirigentes petistas, vai muito além do "realismo" de José Serra, que queria a aliança com o PP (e se aliou com Valdemar Costa Neto, o réu do mensalão que comanda o PR), mas não se sujeitou à exigência de avalizar publicamente a figura de Maluf. Donato está dizendo que a Canossa de Lula vale a pena, se contribui em algo para um projeto de poder já esvaziado de qualquer sentido substantivo de mudança.

Todo o incidente seria apenas tedioso, não fosse a circunstância de que Erundina ficou só no seu protesto quixotesco. Os intelectuais de esquerda que apoiam Haddad não ergueram a voz para questionar, analisar ou explicar o gesto de Lula. Nos dias seguintes à humilhação do jardim, descortinou-se um resultado de dez anos de poder lulista: a morte da crítica de esquerda.

Antonio Cândido, Gabriel Cohn e Eugênio Bucci preferiram nada declarar. Mario Sergio Cortella sugeriu "tocar em frente", após uma "fase de reflexão", mas não ofereceu nenhuma "reflexão". Paul Singer justificou o silêncio como um dever político: "Não tenho interesse em tornar pública qualquer opinião. Vai ficar entre mim e mim mesmo". Marilena Chauí optou por emular o antigo ministro da Justiça da ditadura, Armando Falcão, cujo célebre "nada a declarar" veiculava seu rancor contra a imprensa: "Não vou dar entrevista, meu bem. Não acho nada. Nadinha. Até logo".

Ouvi, informalmente, de uma das "intelectuais tucanas" que se converteram aos encantos da candidatura de Haddad, uma versão da justificativa medíocre posta em circulação por dirigentes petistas: "Maluf por Maluf, Serra também queria". Emir Sader, que dubla como intelectual, mas opera, efetivamente, como militante, expressou o sentido pragmático do denso silêncio geral: "O fundamental é derrotar a 'tucanalha' em São Paulo. Eu posso gostar ou não do Maluf, mas vou fazer campanha para o Haddad do mesmo jeito".

Não é verdade que os intelectuais de esquerda jamais criticaram Lula ou o PT. A crítica existia, pública e intensa, antes da chegada de Lula ao Planalto. Continuou depois, até o "mensalão", um pouco mais amena, dirigida contra a escolha de José Alencar para a vice-presidência e as "políticas mercadistas" de Henrique Meirelles no Banco Central. Os intelectuais de esquerda justificaram sua adesão ao governo Lula sob a premissa de que, aos poucos, o lulismo se moveria para a esquerda, rompendo a teia de "alianças pragmáticas" indispensáveis no início do "processo". A profecia não se cumpriu - e, ao contrário, o lulismo se identificou cada vez mais com os aliados conservadores. A crítica, contudo, experimentou progressiva rarefação, até desaparecer.

Quanto mais o lulismo se adapta à ordem tradicional, menos é criticado pelos intelectuais de esquerda. A equação, superficialmente paradoxal, solicita explicação. Uma sedutora hipótese de solução é imaginar que tais intelectuais estão imbuídos pelo nobre sentimento de "patriotismo partidário". Instado a se subordinar às decisões de um partido comunista que transitava para o controle de Stalin, o dissidente Trotsky invocou a marcha da História rumo ao Futuro: "Certo ou errado, é o meu Partido. Não se pode ter razão contra o Partido ou fora dele". Singer quase repetiu Trotsky - e deve ter pensado na frase do revolucionário russo ao pronunciar a sua, destituída de cores épicas.

A hipótese, porém, não tem sustentação lógica ou histórica. Trotsky não era um intelectual acadêmico, mas um dirigente bolchevique. Na Rússia, desenrolava-se uma revolução social na moldura da crise geral europeia aberta pela Grande Guerra, não uma eleição municipal no quadro da democracia. A explicação prosaica para a renúncia à crítica é que os intelectuais de esquerda brasileiros encontraram seus lugares à sombra da frondosa árvore do poder lulista. Eles se acostumaram com os benefícios profissionais e, sobretudo, com as "rendas de prestígio" auferidas pela proximidade do governo. No terceiro mandato lulista, e diante da perspectiva de um quarto, interiorizaram como hábitos as normas de elogiar os poderosos e sustar, na hora certa, a inclinação à crítica. A evidência disso é obra de Maluf.

Por Demétrio Magnoli

quarta-feira, 18 de julho de 2012

As Gêmeas




Estava tomando café em pé quando viu passando, na calçada, a pequena que começara a namorar na véspera. Largou a xícara, largou tudo e atirou-se no seu encalço, quase como um maluco. Tropeça num cavalheiro, esbarra numa senhora, e vai alcançar a menina pouco adiante. Caminha lado a lado e faz a alegre pergunta:

- Como vai essa figurinha?

A garota, que era realmente linda, estaca por um segundo. Olha-o, de alto a baixo, com surpresa e susto. Em seguida, vira o rosto e continua andando. Osmar, desconcertado, apressa o passo e a interroga "Mas que é isso? Não me reconheces mais?". Nenhuma resposta. E ele; num espanto misturado de irritação: "Que máscara é essa?". Silêncio, ainda Nessa altura dos acontecimentos, a menina só falta correr.

Então, Osmar perde a paciência; segura o braço da fulana: "Olha aqui, Marilena " Ao ouvir o nome, ela pára: vira-se para ele, mais cordial, quase alegre; encara-o confiante:

- Já vi tudo!
- Tudo como?

Ela parece aliviada.

- Eu não sou Marilena, Marilena é minha irmã.

Pasmo, exclama: "Meu Deus do céu! Que coisa!" A garota sorri divertida com a confusão:

- Eu sou Iara.

Osmar faz a pergunta desnecessária:

- E são gêmeas?

Na véspera, conhecera Marilena. Fora um desses flertes deliciosíssimos de ônibus. Viajaram em pé, lado a lado, cada qual pendurado na sua argola. Quando saltaram, no mesmo poste, era evidente que a simpatia era recíproca e irresistível. Marilena deu-lhe telefone, endereço, tudo. Só não lhe dissera por falta de oportunidade que tinha uma irmã gêmea, Iara. Quando se encontraram mais tarde, Osmar contou o episódio e dramatizou:

- Sabe que eu estou com a minha cara no chão? Besta! Semelhança espantosa! Assim nunca vi, puxa! Como é que pode hein?

Sentaram-se num banco de jardim. E, então, Marilena contou que o equivoco de Osmar não seria o primeiro, nem o último. Mesmo amigos e até parentes incidiam por vezes na mesma confusão. A única coisa que diferia entre as duas era um bracelete que Iara usava e a outra não. Ainda na sua impressão profunda, ele observa:

- Irmãs assim, gêmeas, são muito amigas, não são?

Marilena parece vacilar:

- Depende.

Ele insiste: "E vocês?". Marilena resiste:

- Você está querendo saber muito. Vamos mudar de assunto que é melhor. 

O DRAMA

Desde o primeiro momento, Osmar julgou descobrir em Marilena a índole, a vocação, o destino da esposa. Uma semana depois, avisava em casa e no emprego, em toda parte: "Vou ficar noivo! Vou me casar!". No fim de quinze dias começa a freqüentar a casa de Marilena. Mais tarde, ou seja, dois meses, e fica noivo. Os amigos batiam-lhe nas costas:

- Que rapidez, que pressa! Bateste todos os recordes mundiais de velocidade!

Pilheriava:

- O negócio, aqui, é a jato!

Passava todos os seus momentos de folga na casa da noiva. E, apesar de ver as duas irmãs diariamente, continuava fazendo o mesmo espanto: "Como é possível, meu Deus, duas criaturas tão parecidas!". E quando saia com Marilena e Iara, fazia de próprio o comentário jocoso: "Eu me sinto uma espécie de noivo de duas!". 

Um dia, porém, Marilena pôs-lhe a mão no braço:

- vou te pedir um favor Não brinca mais assim. É um favor. Não brinca mais assim. É um favor que te peço.

- Por quê?

E ela:

- Se tu soubesses como me irrita essa semelhança' Estou cansada, farta, de ser tão parecida com Iara! - Pausa e acrescenta, com surdo sofrimento: - Eu não queria me parecer com ninguém! Com mulher nenhuma!


NOVO PEDIDO

Dai a dias, Marilena faz novo pedido: "Não quero que você tenha muita intimidade com Iara, sim?". Osmar, que achava abominável qualquer briga entre parentes, sobretudo entre irmãos, tomou um choque. Pigarreia e indaga: "Mas vocês não são tão amigas?". Marilena crispa-se diante dele: "Amigas, nós? Nunca!". Pela primeira vez, admite:

- Nunca brigamos, nunca discutimos e ela me trata até muito bem. Mas me odeia, ouviu? Eu sei que ela me odeia!

Agarrada ao noivo, Marilena fala do sentimento turvo e constante que não se traduz em atos, em palavras. Explica: "Iara nunca me disse nada, nada, mas...". Osmar pigarreia, assombrado: "Acho que você está exagerando!". Fosse como fosse, ele procurou, com o máximo de tato, discrição, afastar-se da cunhada. Mas não conseguia acreditar que Iara, tão cordial com todos e amorosíssima com Marilena, pudesse odiar alguém e muito menos a irmã. Por essa época, Iara apanhou uma gripe muito forte, quase uma pneumonia, venceu a crise, é certo; mas sua convalescença constituiu um novo problema. Depauperada, numa tristeza continua que a calava, só falava em morrer. O médico da família coça a cabeça: "Esgotamento. O golpe é ir para fora". O casamento de Marilena estava marcado para próximo. A mãe pergunta: "Não assiste ao casamento?". Iara responde:

- Não se incomode, mamãe, que eu não vou fazer falta. E se eu ficar aqui não sei, não; acho que vou acabar fazendo uma bobagem!
A família não teve outro remédio senão mandá-la pata a fazenda de um tio em Mato Grosso. Muito enfraquecida, Iara suspirou:

- Ótimo que seja em Mato Grosso. Quanto mais longe melhor.

BODAS

Quando o avião que a levava partiu, Marilena vira-se para o noivo: "Graças, meu Deus, graças!". Essa alegria pareceu a Osmar cruel, quase cínica. Era, porém, evidente que a ausência da outra a fazia felicíssima: "Agora, sim", dizia, "agora eu sei que não me acontecerá nada!". E, de fato, um mês depois casavam-se no civil e no religioso. Como presente de casamento, haviam ganho uma pequena casa, lírica e nupcial, em Lins de Vasconcelos. Ás dez horas da noite, deixam a casa dos pais da noiva e vão para a nova residência. Estão solitários como Adão e Eva. Ela, transfigurada, avisa: "Depois te chamo!". Entra no quarto e, ainda de noiva, fecha a porta atrás de si. Do lado de fora, ele espera, fumando, impaciente. Quinze minutos depois, bate. De dentro, vem a resposta: "Já vai". Mais quinze minutos e Marilena entreabre: "Pode vir, meu bem". Horas depois, quando já amanhecia, ele, no seu deslumbramento, passa a mão no braço da pequena. Súbito, senta-se na cama. Balbucia, apavorado: "O bracelete!". Ela responde, muito doce:

- Eu não sou Marilena, eu sou Iara.

Fora de si, ele se levanta, procura debaixo da cama, dos móveis; derruba uma cadeira; e, no meio do quarto, olha em torno, sem compreender. Então, Iara aponta: "Ali!". Como um louco, ele corre ao guarda-vestidos; num uivo abre as duas portas. Mas recua, numa histeria pavorosa. Lá de dentro, vem sobre ele o cadáver de Marilena, vestido de noiva. Na cama, Iara está acendendo um cigarro americano.

sábado, 14 de julho de 2012

Eles, os medíocres





Quem, calado, abomina
Os fazeres do homem
Medíocre que parte para
A luta e leva no rosto
A poeira do chão,
Sabe que o que é
Ser maior de espírito
Contra míseros corvos
Que usurpam eternidade.
Badou percorreu casas,
Adentrou mulheres,
Violou virgens pelos quatro
Cantos da vida eterna:
Amém!

O Inferno Lírico de Badou Sarcass X







Eu, Badou Sarcass, anarquicamente único,
Religiosamente ateu...
Vivo como se estivesse às vésperas da morte,
Ou talvez, da vida plena.
Eu, amante do demônio,
No qual não acredito nem um pouco.

Gambás e alcatras




Gambá é um bicho que é muito atropelado. Não é difícil entender o porquê, quando se os vê atravessando a estrada, rebolando e jogando aquele rabão feio e pelado de um lado para o outro. Carcaça de gambá atropelado é uma dessas coisas que só urubu pode achar apetitoso, mas que são frequentes o suficiente para que quem viaja muito sempre as veja.

Em ambientes controlados, refrigerados e limpos, vemos outro tipo de carcaça animal: belas peças de alcatra e picanha, penduradas nas vitrines dos açougues. Tão bonitas que acho que o urubu iria demorar para entender que é para comer.

O problema começa quando o tratamento dado às alcatras começa a ser estendido a seres humanos, como fazem os muitos homens que tratam as mulheres como coisa, como peças de carne expostas em açougues. É um problema sério, que só pode ser combatido fazendo com que eles percebam que elas são muito mais que peças de carne. Reafirmando a sempre existente dignidade feminina que eles negam.

Infelizmente, há quem ache que a solução é passar de alcatra a carcaça de gambá atropelado. Como triste exemplo, sábado teremos uma passeata de carcaças de gambá em Curitiba, quando a edição local da “Marcha das Vadias” vai tentar desfazer o que resta de respeito à dignidade feminina, com direito a senhoras seminuas, com frases de efeito rabiscadas pelo corpo, berrando como almas penadas e assustando as crianças, os cachorros e mesmo algum gambá ou urubu perdido na cidade.

O equivalente masculino talvez fosse uma passeata de barrigudos de cuecas, com o controle remoto numa mão e a latinha de cerveja na outra, arrotando e coçando as partes, como forma de protesto contra a falta de reconhecimento da dignidade masculina. E, mesmo assim, seria um mal menor que a “Marcha das Vadias”, porque a dignidade feminina é infinitamente maior que a masculina. Sua negação – em grau menor pelos donjuans de porta de botequim e em dose máxima pelas vadias urrantes – é um atentado maior que a da masculina, por ser mais digno o alvo do atentado.

Costumo dizer que o feminismo tirou a mulher do pedestal e a arrastou para o açougue; as “vadias”, querendo ser carcaças de gambás atropelados, são apenas a versão já farsesca do mesmo erro fundamental de querer fazer a mulher descer ao nível do homem, achando que isto seria uma forma de melhorar sua situação social. A imbecilidade machista deve ser combatida pela afirmação da dignidade e da capacidade feminina, não pela imitação do pior do sexo masculino.

Nem alcatra, nem gambá: mulher.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

O Espectro



(A Ivan Junqueira)
 
Não há como agarrar-te à natureza
quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa
 
à luz da labareda que a desfaz;
morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.
 
Tudo talvez ressurja mais além,
mas ao abutre, albatroz, águia ou condor
o vôo acaba por pesar e tem
 
que perder altitude no esplendor:
dos páramos à esteira de uma nave
estende-se a amplidão, mas sem repor
 
fôlego a um coração até que a ave
recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era tão doce! Tão suave
 
levitou-se e mais nada lembra o vôo...
Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante
do que caiu como do que voltou,
 
com uma equanimidade impressionante.
E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante
 
fingindo-se impassível se algum dia
ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia
 
surgiu-me um belo dia, e veio a mim
assim que eu consegui levar a sério
os canteiros de Kant num jardim
 
à beira Tâmisa, ante um cemitério...
Lá estivera eu de mão no queixo
a espanar as lombadas do mistério,

seguindo a lógica ao seu belo fecho:
afinal, se a equação mais arbitrária
conseguiria amarrar a terra a um eixo,
 
qualquer cogitação imaginária
não seria nem mais nem menos frágil;
divagações da hora solitária,
 
arabescos da mente, sempre ágil
ao fazer de um trapézio o seu lugar.
Pois foi então que, assim como um presságio
 
obriga a respirar mais devagar,
mas faz bater mais forte o coração, 
eu primeiro senti aquele olhar

Bruno Tolentino



Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino (Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1940 — São Paulo, 27 de junho de 2007) foi um poeta brasileiro.

Nascido numa tradicional e rica família carioca, conviveu desde criança com intelectuais e escritores, entre eles Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Primo do crítico literário brasileiro Antonio Candido e da crítica teatral Bárbara Heliodora, seu avô foi conselheiro do Império e fundador da Caixa Econômica Federal. Nesse ambiente familiar, foi instruído em inglês e francês ao mesmo tempo de sua alfabetização no português.

Publica em 1963 seu primeiro livro, "Anulação e outros reparos". Com o advento do golpe militar de 1964, muda-se para a Europa a convite do poeta Giuseppe Ungaretti, onde viverá 30 anos, tendo residido na Itália, Bélgica, Inglaterra e França. Foi professor de literatura nas universidades de Oxford, Essex e Bristol e tradutor-intérprete junto à Comunidade Econômica Européia. Publica em 1971, em língua francesa, o livro "Le vrai le vain" e, em 1979, em língua inglesa, "About the Hunt", ambos bem recebidos pela crítica literária européia. Sucedeu o poeta e amigo W. H. Auden na direção da revista literária Oxford Poetry Now.

Em 1987, sob a acusação de porte de drogas, é condenado a 11 anos de prisão. Cumpriu apenas pouco mais de um ano da pena, em Dartmoor, no Reino Unido. "Adorei e procurei tirar o máximo de proveito", foi o que Bruno declarou sobre a experiência, numa entrevista em agosto de 2006. Aos companheiros de prisão, organizou aulas de alfabetização e de literatura, estas últimas nomeadas de "Seminars of Drama and Literature", que, conforme posteriormente relatado por Bruno, "em cujas sessões avançadas chegaram a comparecer psicanalistas de renome, ao lado de personalidades do mundo das Letras tais como Harold Carpenter, o estudioso e biógrafo de Pound e Auden, o dramaturgo Harold Pinter, ou Lady Antonia Fraser".

Tolentino retorna ao Brasil em 1993, publicando, no ano seguinte, o livro "As horas de Katharina", escrito durante o período de 22 anos (1971-1993), ganhando com ele o Prêmio Jabuti de melhor livro de poesia. Em 1995, publica "Os Sapos de Ontem", uma coletânea de textos, artigos e poemas originados de uma polêmica intelectual com os irmãos Haroldo de Campos e Augusto de Campos, que nesse livro serão os principais alvos de sua "língua ferina entortada pelo vício da ironia", frase que Bruno usou durante uma entrevista em que lhe foi pedido "um perfil abrangente de si mesmo". Ainda em 1995 publica "Os Deuses de Hoje", e, em 1996, "A balada do cárcere", livro nascido da experiência de sua prisão pouco menos de dez anos antes. Ainda nesse ano, foi publicada uma polêmica entrevista com Bruno para a Revista Veja[4], onde o poeta critica, entre outras coisas, a atual situação intelectual do Brasil, o Concretismo, a concepção e aceitação da letra de música enquanto poesia e a elevação de músicos populares à posição do intelectual.

Bruno irá publicar em 2002 e 2006, respectivamente, os livros que considerou como a culminação de sua obra poética: "O mundo como Idéia", escrito durante 40 anos (1959-1999), e "A imitação do amanhecer", escrito durante 25 anos (1979-2004). Ambos lhe renderam o Prêmio Jabuti, prêmio já alcançado em 1993 com "As horas de Katharina", tornando-o assim o único escritor a ganhar três edições do prêmio. Bruno também recebeu, por "O mundo como Idéia", o Prêmio Senador José Ermírio de Morais, prêmio nunca antes dado a um escritor, em sessão da Academia Brasileira de Letras, com saudação proferida pelo acadêmico, filósofo, poeta e teórico do Direito Miguel Reale, seu amigo.

Tolentino, que tinha Aids e já havia superado um câncer, esteve internado durante um mês na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde veio a falecer, aos 66 anos de idade, vitimado por uma falência múltipla de órgãos, em 27 de junho de 2007.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

A paranoia bullying



Entro em sala de aula várias vezes na semana. Daí vem muito do que penso acerca dos modismos perniciosos que assolam o mundo da educação.

E daí também vem o fato de que, apesar de ser pessimista (nada tem de chique no pessimismo, apenas para quem não o conhece por dentro e o confunde com um estilo melancólico de se vestir), não desisto da vida e vou morar no bosque de "Walden" (ou algo semelhante), como fez o filósofo americano Thoreau no século 19.

Hoje vou comentar um caso específico de moda que em breve provavelmente vai destruir qualquer liberdade e espontaneidade na sala de aula: a "paranoia bullying".

Se atentarmos para o que o Ministério Público prepara como controle da vida escolar "interna", veremos, mais uma vez, a face do totalitarismo via hiperatividade do poder jurídico.

Ao invés de atacar o que deve ser atacado (o lixo que é a escola no Brasil, porque o Estado arrecada impostos como um dragão faminto, mas não dá nada em troca), o Estado e seu braço armado, o governo socialista que temos há décadas, que adora papos-furados como cotas raciais e bijuterias semelhantes, invade o espaço institucional do cotidiano escolar com sua vocação maior e eterna: o controle absoluto da vida nos seus detalhes mais íntimos.

E ninguém parece enxergar isso, muito menos a pedagogia e sua vocação, nos últimos anos, para livros bobos da moda e palestrantes de autoajuda.

Quando ouço alguma "autoridade pública em bullying", sinto que estou diante de um inquisidor, que, como todos, sempre se acha representantes do "bem".

Seria de bom uso dar aulas de história dos perfis psicológicos dos grandes inquisidores, como Torquemada e Bernard de Gui, para essas "autoridades públicas" em invasão da vida íntima das pessoas e das instituições. Eles descobririam sua ascendência direta do grande inquisidor de Dostoiévski ("Irmãos Karamazov").

Em breve, a melhor solução para o professor será a indiferença preventiva para com os alunos. Melhor uma aula burocrática e avaliações burocráticas do tipo "múltipla escolha" ou "diga se é falso ou verdadeiro", mesmo nas universidades, porque assim o aluno não poderá acusar o professor de "desumanidade" ao reprová-lo, ou pior, acusá-lo de bullying porque desconsiderou sua "cultura de ignorante", mas que "merece respeito assim como Shakespeare".

Os "recursos" contra reprovação logo se transformarão em processos contra "bullying intelectual". E os fascistas do controle jurídico da vida terão orgasmos.

Atitudes como estas destroem a autoridade da instituição, dos profissionais que nela trabalham e transformam todos em reféns da "máquina jurídica". O resultado é que família e escola perdem autonomia. O que este novo coronelismo não entende é que existe um risco inerente ao convívio escolar e que as autoridades imediatas, professores e coordenadores é que devem agir, e não polícia ou juízes.

Na minha vida como aluno em universidade tive duas experiências com dois professores que hoje poderiam ser enquadradas facilmente neste papinho de "tratamento desumano", mas que foram essenciais na minha vida profissional e pessoal.

A primeira, quando era um aluno da medicina na Universidade Federal da Bahia, ocorreu no dia em que perguntei a um professor como um paciente terminal via o fato de que ele ia em direção ao nada. Ele disse: "O senhor está na aula errada, deveria estar na aula de filosofia".

Isso, numa faculdade de medicina, significa mais ou menos que você não tem a natureza forte o bastante para encarar a vida como ela é.

A segunda, já na faculdade de filosofia da USP, aconteceu quando um professor me deu zero e disse para procurá-lo. Ao me ver, no meio da secretaria e na frente de vários funcionários e alunos, ele disparou: "Suas ideias são ótimas, seu português é um lixo".

Em vez de preparar a polícia para prender bandidos que assaltam casas e restaurantes aos montes, o governo prefere brincar com essas bijuterias, fingindo que cumpre sua função de garantir a segurança pública. Será que isso é medo de enfrentar os criminosos de verdade?

domingo, 10 de junho de 2012

Presença de Goethe





"DESEJAIS" - dizia Benedetto Croce - "fugir da baixa atualidade e ficar sempre atual? Refugiai-vos naquilo que jamais teve atualidade!" Refugio-me em Goethe, e fico surpreendido com a sua presença.

Quarenta e cinco volumes, cheios de poemas, de tragédias, de romances, de contos, de crítica, de filosofia, de ciências naturais, de tudo aquilo quanto existe entre o céu e a terra, e alguma coisa ainda mais. É o maior poeta e o mais universal dos tempos modernos. É o supremo modelo da existência espiritual nestes tempos.

Realmente? Essa estátua impassível seria a expressão de uma vida exemplar? Fogo, entusiasmo, coerência, onde estão nesse revolucionário que acabou ministro de Estado, nesse artista que dedicou metade de sua vida à óptica e aos minerais, nesse apaixonado que representa o papel de deus olímpico? Onde está a coerência nessa multidão de obras, dois terços das quais são completamente falhos? Dessa obra que louvam sempre sem conhecê-la, o que é que ficou? Hesito em responder. Os mais belos poemas da língua alemã, ao lado de mil futilidades em versos inábeis; as Elegias romanas, única poesia moderna digna da Antiguidade, ao lado de penosas imitações classicistas; a sabedoria sonora do Tasso e da Ifigênia, ao lado de fracas peças históricas; a tempestade juvenil do primeiro Fausto, em face de comédias ridículas pela incapacidade de provocar risos. Desigualdade surpreendente. O Werther, a grande paixão, desfigurado por um sentimentalismo insuportável; os romances de Wilhelm Meister, espécie de suma da civilização humanística, quase ilegíveis por sua técnica de romance antiquada. As Afinidades eletivas, primeira obra-prima do romance psicológico, de um tédio torturante. Todas as manifestações de um enfadonho classicismo pesam ao lado da sabedoria enternecedora de um velho homem, como nessas Conversações com Eckermann. Enfim, o segundo Fausto, em que Goethe misturou os mistérios mais sublimes a futilidades inexplicáveis; fogo de artifício, onde um grande espírito se dispersa em mil cintilações luminosas. Onde está a unidade de tal obra?

terça-feira, 22 de maio de 2012

Só pode dar nisso aí



Retorno ao fato porque é de riqueza extraordinária. Quem assistiu "Diários de Motocicleta" há de lembrar da passagem de Che Guevara pelo leprosário de San Pablo, atendido por uma congregação de religiosas no meio da selva, às margens do Amazonas. E há de lembrar que para os sinistros efeitos do filme, Che é apresentado como um santo abrasado de amor aos enfermos, e as irmãs como um perverso corpo de autoridades locais. Pura mistificação! Após duas semanas fazendo travessuras por ali enquanto superava uma crise de asma, Che bateu asas e foi fazer seu turismo revolucionário noutra freguesia. Quanto às irmãs, tão maltratadas pelo filme, continuaram, vida afora, enfiadas no mato, cuidando dos leprosos. Eis um bem torneado exemplo da diferença entre o verdadeiro amor ao próximo e a fantasia que empresta ao marxismo e ao comunismo o brilho vulgar das lantejoulas. Para o cineasta Walter Salles as religiosas eram megeras e Guevara um anjo de bondade.

Tem sido cada vez mais recorrente a publicação de artigos sobre educação. Junto-me, então, a administradores, economistas, empresários, filósofos que enveredaram por essa pauta. Vou enfocá-la sob um aspecto que - não se surpreenda, leitor - tem muito a ver com o filme abordado acima. Aliás, são tão recorrentes as reflexões sobre o tema da educação por profissionais das mais variadas especialidades que o fato já despertou reações adversas, contestando a concessão de espaço para quem não é do ramo. Os não educadores seriam meros palpiteiros. Mas convenhamos, é muito difícil ficar calado diante do que se vê.

Imagine um brasileiro que percorra do primeiro ao último degrau o sistema de ensino do país. Qual a corrente filosófica a que mais esteve submetido durante todo esse período, ainda que haja trocado de escola, de cidade e de Estado, em cada trecho do percurso escolar? Pois é. Marxismo. É análise marxista, crítica marxista, economia marxista, visão marxista da história, teologia da libertação, pedagogia do excluído e, como lastro para o materialismo histórico, camadas maciças de maledicência sobre o cristianismo. Esse marxismo de polígrafo escolar tem a profundidade de um pires. Os que o lambem como tema de casa são incapazes de escrever uma lauda a respeito, mas saem do colégio prontinhos para ler a vida com os olhos que lhes deram. Assistem "Diários de Motocicleta" e concluem: no peito de Che batia um coração de mártir; já o coração daquelas beatas do leprosário não se abria nem com formão e martelo.

Só escapam dessa linha de montagem, que inclui a maioria dos estabelecimentos de ensino confessionais, os poucos estudantes que recebem em casa, ou de algum professor achado por pura sorte no meio do caminho, dose suficiente de antídoto para enfrentar o que lhes é ministrado ao longo dos cursos. Se mesmo nos bons educandários, deixa-se de lado a sã filosofia e se depreciam os grandes valores que inspiraram e inspiram a imensa maioria dos melhores vultos da humanidade, pergunto: como esperar das elites brasileiras que junto a esses estabelecimentos buscam formação, coisa melhor do que isso que vemos por aí? Quando parece muito normal que o governo contrate um grupo para escrever o passado (Walter Salles faria excelente documentário sobre a comissão), a temática educacional há de ser, sim, motivo de grave preocupação para quem reflita sobre o futuro do país.

Por Percival Puggina

O ódio no Brasil

Excelente palestra com o professor Leandro Karnal:


segunda-feira, 14 de maio de 2012

A traição da psicologia social



Olha que pérola para começar sua semana: "Esta é a grande tolice do mundo, a de que quando vai mal nossa fortuna -muitas vezes como resultado de nosso próprio comportamento-, culpamos pelos nossos desastres o Sol, a Luz e as estrelas, como se fôssemos vilões por fatalidade, tolos por compulsão celeste, safados, ladrões e traidores por predominância das esferas, bêbados, mentirosos e adúlteros por obediência forçada a influências planetárias". WilliamShakespeare, "Rei Lear", ato 1, cena 2 (tradução de Barbara Heliodora).

Os psicólogos sociais deveriam ler mais Shakespeare e menos estas cartilhas fanáticas que dizem que o "ser humano é uma construção social", e não um ser livre responsável por suas escolhas, já que seriam vítimas sociais. Os fanáticos culpam a sociedade, assim como na época de Shakespeare os mentirosos culpavam o Sol e a Lua.

Não quero dizer que não sejamos influenciados pela sociedade, assim como somos pelo peso de nossos corpos, mas a liberdade nunca se deu no vácuo de limites sociais, biológicos e psíquicos. Só os mentirosos, do passado e do presente, negam que sejamos responsáveis por nossas escolhas.

Mas antes, um pouco de contexto para você entender o que eu quero dizer.

Outro dia, dois sujeitos tentaram assaltar a padaria da esquina da minha casa. Um dos donos pegou um dos bandidos. Dei parabéns para ele. Mas há quem discorde. Muita gente acha que ladrão que rouba mulheres e homens indo para o trabalho rouba porque é vítima social. Tadinho dele...

Isso é papo-furado, mas alguns acham que esse papo-furado é ciência, mais exatamente, psicologia social. Nada tenho contra a psicologia, ao contrário, ela é um dos meus amores -ao lado da filosofia, da literatura e do cinema. Mas a psicologia social, contra quem nada tenho a priori, às vezes exagera na dose.

O primeiro exagero é o modo como a psicologia social tenta ser a única a dizer a verdade sobre o ser humano, contaminando os alunos. Afora os órgãos de classe. Claro, a psicologia social feita desta forma é pura patrulha ideológica do tipo: "Você acredita no Foucault? Não?! Fogueira para você!".

Mas até aí, este pecado de fazer bullying com quem discorda de você é uma prática comum na universidade (principalmente por parte daqueles que se julgam do lado do "bem"), não é um pecado único do clero fanático desta forma de psicologia social. Digo "desta forma" porque existem outras formas mais interessantes e pretendo fazer indicação de uma delas abaixo.

Sumariamente, a forma de psicologia social da qual discordo é a seguinte: o sujeito é "construído" socialmente, logo, quem faz besteira ou erra na vida (comete crimes ou é infeliz e incapaz) o faz porque é vítima social. Se prestar atenção na citação acima, verá que esta "construção social do sujeito" está exatamente no lugar do que Shakespeare diz quando se refere às "esferas celestes" como responsáveis por nossos atos.

Antes, eram as esferas celestes, agora, são as esferas sociais as culpadas por roubarmos os outros, ou não trabalharmos ou sermos infelizes. Se eu roubo você, você é que é culpado, e não eu, coitado de mim, sua real vítima. Teorias como estas deveriam ser jogadas na lata de lixo, se não pela falsidade delas, pelo menos pelo seu ridículo.

Todos (principalmente os profissionais da área) deveriam ler Theodore Dalrymple e seu magnífico "Life at The Bottom, The Worldview that Makes theUnderclass", editora Ivan R. Dee, Chicago (a vida de baixo, a visão de mundo da classe baixa), em vez do blá-blá-blá de sempre de que somos construídos socialmente e, portanto, não responsáveis por nossos atos.

Dalrymple, psiquiatra inglês que atuou por décadas em hospitais dos bairros miseráveis de Londres e na África, descreve como a teoria da construção do sujeito como vítimas sociais faz das pessoas preguiçosas, perversas e mentirosas sobre a motivação de seus atos. Lendo-o, vemos que existe vida inteligente entre aqueles que atuam em psicologia social, para além da vitimização social que faz de nós todos uns retardados morais.


Por Luiz Felipe Pondé







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