"DESEJAIS" - dizia
Benedetto Croce - "fugir da baixa atualidade e ficar sempre atual? Refugiai-vos
naquilo que jamais teve atualidade!" Refugio-me em Goethe, e fico
surpreendido com a sua presença.
Quarenta e cinco volumes,
cheios de poemas, de tragédias, de romances, de contos, de crítica, de filosofia,
de ciências naturais, de tudo aquilo quanto existe entre o céu e a terra, e
alguma coisa ainda mais. É o maior poeta e o mais universal dos tempos
modernos. É o supremo modelo da existência espiritual nestes tempos.
Realmente? Essa estátua impassível
seria a expressão de uma vida exemplar? Fogo, entusiasmo, coerência, onde estão
nesse revolucionário que acabou ministro de Estado, nesse artista que dedicou
metade de sua vida à óptica e aos minerais, nesse apaixonado que representa o
papel de deus olímpico? Onde está a coerência nessa multidão de obras, dois
terços das quais são completamente falhos? Dessa obra que louvam sempre sem conhecê-la,
o que é que ficou? Hesito em responder. Os mais belos poemas da língua alemã,
ao lado de mil futilidades em versos inábeis; as Elegias romanas, única poesia
moderna digna da Antiguidade, ao lado de penosas imitações classicistas; a
sabedoria sonora do Tasso e da Ifigênia, ao lado de fracas peças históricas; a tempestade
juvenil do primeiro Fausto, em face de comédias ridículas pela incapacidade de
provocar risos. Desigualdade surpreendente. O Werther, a grande paixão,
desfigurado por um sentimentalismo insuportável; os romances de Wilhelm
Meister, espécie de suma da civilização humanística, quase ilegíveis por sua técnica
de romance antiquada. As Afinidades eletivas, primeira obra-prima do romance
psicológico, de um tédio torturante. Todas as manifestações de um enfadonho
classicismo pesam ao lado da sabedoria enternecedora de um velho homem, como
nessas Conversações com Eckermann. Enfim, o segundo Fausto, em que Goethe
misturou os mistérios mais sublimes a futilidades inexplicáveis; fogo de
artifício, onde um grande espírito se dispersa em mil cintilações luminosas.
Onde está a unidade de tal obra?
Foram buscar esta unidade na
sua vida. Vida admirável, realmente: a plenitude dos seus 82 anos, esta ascensão
de um modesto filho de burguês, somente pelas armas do espírito, aos cumes da
humanidade; esta purificação de todas as paixões até à soberania de uma
individualidade universal. Mas pagou caro. Ainda em vida, Goethe fez de si
próprio um monumento. O inverso desse individualismo magnífico é uma impassibilidade
desumana. Goethe respirava ainda, e, no entanto, já estava morto.
É o cúmulo da inatualidade.
A renúncia à vida mata o espírito. O amador de fósseis torna-se fóssil. Traiu à
humanidade, à arte e a si mesmo. Três pontos de acusação que já não permitem
subterfúgios. Goethe, espírito apolítico, egoísta, não compreendeu o maior acontecimento
do seu tempo, a Revolução Francesa. Contra ela, colocou-se ao lado das forças
feudais, embora intimamente as desprezasse. Assim, traiu o povo, do qual
proviera; traiu a humanidade, cujos sofrimentos absolutamente não o
preocupavam. Não são unicamente os liberais de outrora que o dizem. São os cristãos
que retomam a censura a um humanismo puramente estético, desumano, pelo qual
Goethe se transformava em olímpico impassível, acima do formigueiro dos homens
desprezados.
Goethe, o artista, não compreendeu
o maior acontecimento literário do seu tempo, o romantismo. Depois de ter
experimentado, em vão, cativar os seus contemporâneos com a fórmula
classicista, ele trai a arte, para abraçar as ciências naturais e enriquecê-las
com as suas descobertas duvidosas e as suas fantasias arbitrárias.
Goethe, enfim, traiu a humanidade,
a arte e a sua própria dignidade humana. Todas três ao mesmo tempo, ao
ajoelhar-se diante de Napoleão, ao beijar as mãos daquele que se deveria tornar
o modelo de todos os déspotas.
Inimigo da humanidade,
traidor da arte, adulador do déspota! Já é alguma coisa. Mas creio que é aí,
precisamente aí, nessas três fraquezas, que reside a sua verdadeira grandeza;
são esses três fatos que o tornam exemplar, especialmente para nós, e que
constituem a presença de Goethe.
Desde muito cedo, Goethe
sabia insustentável o absolutismo do século XVIII, tanto como os nossos
conservadores de hoje reconhecem insustentável o atual estado de coisas. A
fragilidade do sistema fê-lo profetizar, em 1792, depois da insignificante
primeira retirada dos aliados, em Valmy, diante do exército republicano:
"Por aí, uma nova época da história começa." Goethe, porém, não saudava
a revolução vitoriosa. "J'aime mieux une injustice qu'um désordre"96
- disse em 1793, diante da fúria revolucionária em Mainz; e a frase foi muitas
vezes comentada no sentido duma terrível indiferença moral; mas, na verdade,
Goethe aconselhou, por essas palavras, não punir os crimes dos revoltosos: o
humano continuou, para ele, acima do político. O seu conservantismo, inimigo de
todas as violências, cuidadoso de "não perturbar o sono do mundo",
para não desencadear as forças desordenadas, é a atitude de um verdadeiro
sábio, que não trai, fazendo coro com a política.
Goethe nunca fazia coro, porque
ele não conhecia bem o seu papel. Não chegou nunca a um sistema, a um programa:
falta preciosa numa época em que os sistemas da ciência servem a programas
criminosos. Esta falta preciosa o preservava de todo espírito de partido, de
qualquer conformismo, e nisso ele continua exemplar. No fundo dessa independência
existe um pessimismo que deriva igualmente do pensamento cristão e do
pensamento "filosófico": a história é "le tableau des crimes et
des malheurs de l'humanité".97 Diante da tormenta ele se mostra cético: o
mundo perdeu a cabeça, porém Goethe deseja conservar a sua. Há nisso, subterraneamente,
uma filosofia da história que se aproxima da dialética do seu amigo Hegel: os
transtornos históricos são apenas passagens inevitáveis. Isto explica uma certa
indiferença em face das catástrofes exteriores; depois do desmembramento da
Alemanha por Napoleão, Goethe não lastima a queda do Império, porém saúda o novo
reino do espírito alemão; e, com efeito, nesse momento de humilhação, o Império
universal de Goethe e de Hegel começa. Goethe aprova o caos exterior, para salvar
a liberdade do espírito. Esta sabedoria não é, decerto, uma sabedoria política.
É, porém, a única arma do espírito contra essa política que Napoleão dizia ser
o destino da época moderna, contra a política total. Em lugar da sabedoria
apolítica, dir-se-ia melhor sabedoria suprapolítica, que defende a
independência, a sinceridade, a liberdade da criatura humana. Aceitando a luta
no terreno inimigo, no terreno político, sucumbir-se-ia certamente; mas o
inimigo não destruirá jamais a catedral invisível do espírito.
Tal atitude é sempre uma
atitude contra a época. E Goethe é um homem contra a sua época. O individualismo
da Renascença atinge, nele, o seu apogeu, enquanto uma nova era começa. O
capitalismo quebrará as formas orgânicas da sociedade, para dar lugar às multidões
proletarizadas; a personalidade bem formada cede lugar à massa impessoal.
Goethe o previu: "Tudo, meu caro" - escreve ele em 1825, ao seu amigo
Zelter - "tudo se tornou radical; o mundo somente admira a riqueza e a
velocidade. Somos os últimos de uma época que não voltará nunca." Em 1831,
Hegel morreu, e em 1832, Goethe; em 1830, pela revolução de julho, começara a
época do liberalismo, do comércio e do jornalismo. Um século mais tarde, as massas
derrubarão a burguesia que as criou. Assistimos ao último ato da tragédia
comovidos com a catástrofe que ameaça devorar-nos, surpreendidos com a pergunta
que a história nos dirige.
Para esta pergunta Goethe
não tem resposta. Não a tem porque isso não é da competência do artista: as
soluções são sempre fáceis e valem o que valem. É que a sua existência privada,
não menos comovida que a nossa, se baseava, como a nossa, nas hesitações uma
época de transição. Goethe é filho da burguesia, não da nova burguesia
capitalista, e sim da velha burguesia medieval, ele, o filho da cidade livre de
Frankfurt e das suas liberdades medievais. Ele não pode arvorar-se em paladino
de uma revolução que o supera; continua o embaixador de uma burguesia ainda
idealista, junto aos poderes feudais, aos quais está ligado pelo respeito das
tradições. Quebrai as tradições; e tudo desabará. Negai a revolução; ela vos devorará.
É um beco sem saída? Não, é a dialética, sempre renovada, da história. Naquela
época, ela se impõe. Hegel, o filósofo, dominou-a. Goethe, o poeta, era incapaz
de transfigurá-la em arte: supremo testemunho de sua sinceridade. Em 1795, ele experimenta,
em vão, transformar em poesia a catástrofe. Essas obras falidas marcam o fim da
sua existência literária. Deixa a história humana, tornada desumana; refugia-se
na história natural.
A natureza é o seu asilo
misericordioso. A grande invocação - "Natureza, minha mãe sublime" -
no Fausto, é escrita enquanto Napoleão conquista a Itália. A Natureza, com
maiúscula, o Macrocosmo, paira muito alto, muito acima do formigueiro humano e
das suas convulsões, que são, no Universo, sem importância. Quanto mais o homem
se purifica das suas paixões banais, quanto mais se eleva acima dessas perturbações,
tanto mais autorizado se acha ele a participar da tranqüilidade do Universo.
Esta participação é possível porque a criatura, o microcosmo, é a imagem do Macrocosmo.
Uma grande lei impera, e une todos os membros do organismo Natureza: a lei da
analogia. Na linha da analogia, os seres evolucionam em metamorfoses perpétuas:
metamorfoses gerais das espécies; metamorfoses individuais que vão do
nascimento, através das polaridades de toda existência viva, à morte, que
prepara uma nova metamorfose da vida.
Esta concepção da natureza
envolve admiravelmente a vida; mas fracassa diante dos fenômenos da natureza inanimada.
A "metamorfose das plantas" e a formação do crânio pela metamorfose das
vértebras superiores, duas descobertas de Goethe, ficaram como base da botânica
e da anatomia comparada. Mas na óptica, Goethe não sabe distinguir o lado
físico do lado fisiológico do fenômeno "cor"; perde-se em polêmicas
estéreis contra a ciência matemática de Newton, e cria uma ciência das cores
que ele acredita ser a obra principal da sua vida e que a posteridade
unanimemente rejeitou: o futuro era da matemática. A mesma posteridade fez, da
metamorfose goetheana, a evolução darwiniana, da qual chamaram a Goethe o precursor.
Mas Goethe não era precursor. Ele era refratário. No limiar da época das
ciências naturais, ao serviço da técnica, Goethe é o último paladino de uma
outra ciência da natureza, orgânica e desinteressada. Macrocosmo e microcosmo,
analogia, metamorfose: são os princípios da ciência natural da Renascença e da
Antiguidade, de Bruno e de Plotino. Como Giordano Bruno e Leonardo, Goethe é naturalista
e artista ao mesmo tempo; ele não separa as ciências naturais e as artes. De
todas as lições goetheanas, esta é, talvez, a maior. O abismo entre a arte e a
vida existe sempre; o falso idealismo abjeto e o falso naturalismo tendencioso
são igualmente enganadores; ambos, subterfúgios de um esteticismo que trai a
vida e a arte ao mesmo tempo. É a mentira. Mas onde colocar a arte, que está
além desse mundo e lhe fica sempre ligada, demasiado ligada? Unicamente num
mundo que é bem nosso, e no entanto superior: a Natureza. Goethe reconcilia a arte
com a vida, reduzindo-as à Natureza, que jamais mente.
Esta imersão na Natureza é
verdadeiramente romântica. Com efeito, Plotino e Bruno são os mestres do
romantismo; Novalis e Schelling respiram na filosofia do Macrocosmo e do
microcosmo, nos conceitos da analogia e da polaridade. O romantismo, que Goethe
desejava afastar da poesia, este romantismo volta vitoriosamente na filosofia
goetheana da Natureza; e é aí que ele está bem no seu lugar. Um romantismo puramente
literário torna-se superficial e será amanhã um classicismo renovado. Outro romantismo,
verdadeira redenção das forças humanas, prepara nossa redenção das cadeias da
ciência natural a serviço da técnica, devolvendo-nos à Mãe, à Natureza.
Para Goethe o fim das
ciências naturais não é servir ao homem pela técnica; o estudo da Natureza,
segundo Goethe, deve fazer do homem um ser consciente de si mesmo, dar-lhe um
coração puro, em harmonia com o Universo. Esta ciência da Natureza é quase uma religião.
Para Goethe, o humanista, a Natureza tornou-se um templo, o templo que o
Apóstolo encontrara em Atenas, dedicado "Ao Deus desconhecido".
Houve, no templo científico, naturalista, de Goethe, a inscrição bem humanística,
as palavras de Heráclito que Aristóteles nos transmitiu: "Introite, nam et
hic dii sunt."98 E Goethe assemelha-se a esses sacerdotes da Antiguidade
primitiva, que eram ao mesmo tempo, servidores do templo e conhecedores dos
mistérios da Natureza.
O que une, para Goethe, a
arte à Natureza, é a sua inutilidade sublime. A criatura, obra da Natureza, é
perfeita em si mesma, como a obra de arte; a arte alcança sempre a finalidade
que não tem. Esta inutilidade sublime, este desinteresse completo do espírito,
esta "religião da cultura espiritual", é o núcleo da "cultura
goetheana", ideal da mais alta inatualidade. Foi o que tornou a Goethe
solitário durante a sua vida; foi o que fez o século abandoná-lo; é o que o torna
exemplar para os nossos dias. "Cultura goetheana" é uma concepção bem
sem atualidade, mas que continua sempre presente.
É uma religião da qual era
Goethe o sumo pontífice. Nunca um grande homem foi tão consciente do seu papel:
ser príncipe no reino do espírito. Realmente ele assemelhou a sua vida à de um
olímpico. Mas os contemporâneos, como a própria posteridade, acreditavam-no um
déspota.
Tinham esquecido o que este
déspota havia realizado: uma obra de libertação. Ele se fez chefe da revolução
pré-romântica, e depois de ter afastado os falsos deuses do racionalismo
petrificado, dominou as forças desencadeadas, para instituir o Cosmos de uma nova
harmonia entre o homem e a Natureza, sob a regência da arte.
Essa vida tem apenas um
rival: a vida do homem que se constituiu chefe da revolução, e que, depois de
ter expulsado as forças do passado, instituiu a harmonia de uma nova época;
época que só foi vitoriosa depois que deixaram de julgar déspota o seu autor. É
a vida de Napoleão.
Bonaparte teve a intuição
deste parentesco; encontrando Goethe, dirigiu-lhe a maior das suas palavras:
"Eis um homem!" Goethe também possuía a consciência clara desse
parentesco: ele teve mais do que admiração a Napoleão, ele o amou. É admirável,
porém, como soube subtrair-se ao imperador deste mundo. Goethe é o clérigo que
não trai, não serve. Goethe vê em Napoleão o lado noturno, demoníaco da sua
própria existência olímpica. Napoleão era, aos olhos de Goethe, a encarnação de
um demônio. Mas a expressão "demônio" tem, na linguagem de Goethe,
uma significação especial, a mesma que para Sócrates. O demônio de Goethe é o
lado perigoso do espírito, mas sempre necessário no movimento dialético da
história. Era preciso que Goethe atingisse a idade do salmista para saber exprimir
esta suprema sabedoria, a sabedoria do seu poema Cinco palavras órficas. Uma
sabedoria que nos está bem presente:
As cinco forças primordiais
deste mundo são: Demônio, a força interior do homem; Natureza, a força do
Universo; Tyche, a força das contingências que nos cercam e movimentam; Ananke,
a força da necessidade que nos rege; e Elpis. A Tyche se opõe a Natureza: a criação
perde a inocência do primeiro dia e torna-se o motivo da nossa dor. O homem se
opõe a Tyche; o demônio, em nós, é mais forte do que as contingências, e
transforma o mundo; o homem domina a Natureza e transforma Tyche em ordem
humana, Ananke. Ananke domina ao Demônio: é necessário que o homem se curve. Desde
então, somos os prisioneiros da necessidade que criamos. Mas existe ainda, em
nós, um resto do Demônio, resto do paraíso perdido e promessa de liberdade: é
nossa última deusa, Elpis, a Esperança.
Por Otto Maria Carpeaux
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