Por Thiago Moraes
Um
dos maiores problemas que encontramos no quadro institucional de nosso
país é a falta de compromisso dos políticos com as idéias que dizem
defender, de modo que ao se votar num socialista muitas vezes estamos escolhendo apenas mais um exemplar do velho coronelismo e ao se votar num liberal
apostamos num defensor de todas as formas de mal corporativismo. Para
quem é católico isso até acarreta uma complicação extra, pois para
seguir os ensinamentos da Igreja em matéria política se fica dependendo
de uma reflexão sobre o que as coisas são na realidade, já que não é
prudente fazer uma aplicação direta baseada em rótulos.
De
qualquer forma, mesmo com toda a sua esquizofrenia, esse quadro não
consegue absorver a corrente de opinião mais próxima daquilo que o
Brasil profundo¹ valoriza: o conservadorismo. A sabotagem em torno dela é
tão grande, que é como se a mesma não existisse; o conservadorismo não é
considerado uma opinião, uma postura legítima, mas um conjunto de
tabus. Todavia, as oportunidades
em que o povo se manifestou com liberdade – como no caso do referendo
sobre o desarmamento – mostram que nossa alma não tem nada de
revolucionária, ela quer a permanência daquilo que com sucesso as
gerações anteriores nos legaram e, no que pode ser mudado, prudência e
comedimento.
Teoricamente, o conservadorismo moderno começou com a obra Reflexões sobre a revolução na França (1790),
do político e pensador anglo-irlandês Edmund Burke, e se desenvolveu ao
longo de todo o século XIX e XX como uma vertente política contrária às
utopias. Mais tarde, o filósofo americano Russell Kirk formulou uma lista de dez princípios que resumem a marcha do conservadorismo em tantas décadas
e que pode facilmente ser encontrada na internet numa tradução feita
pelo famoso Pe. Paulo Ricardo. Pois bem, dessa lista se infere que uma
das principais características do conservador é valorizar as lições do
passado para bem viver o presente e planejar o futuro, e isso, sem
surpresa alguma dada a genialidade do autor, casa com perfeição no
conceito de tempo tríbio do intelectual pernambucano Gilberto Freyre.
Segundo
o Mestre de Apipucos, “o presente (…) é um presente sempre em expansão,
para trás e para adiante. Tanto evoca quanto profetiza. A ciência que
se considere Futurologia – ciência relativa – tende a ser uma disciplina
da tendência humana para a profecia, em ligação com a tendência, também
muito humana, para a evocação; e, sem que falte qualquer dessas
tendências o terra-a-terra da observação da realidade imediata.
Realidade imediata na qual se cruzam sobrevivências e antecipações. O
homem nunca está apenas no presente. Se apenas se liga ao passado,
torna-se arcaico. Se apenas procura viver o futuro, torna-se utópico. A
solução para as relações do homem com o tempo parece estar no
reconhecimento do tempo como uma realidade tríbia; e como o homem vive
ele mesmo imerso no tempo, ele próprio é um ser – um estar sendo, diria
talvez Gasset – tríbio”².
Temos
aqui uma tentativa de humanização da noção de tempo, uma tentativa de
distinção entre o tempo biológico e o tempo físico-matemático. “Tempo
tríbio”: tempo resultado do ciclo biológico, em sua inexorável ordenação
do “antes” e do “depois”. Do “antes” que se aproxima irresistivelmente
para a transformação em “depois”, dando-nos ilusão análoga à de todo
sistema em movimento, a ilusão de um movimento exterior, em sentido
oposto. Vemos o tempo avançar sobre nós, vindo do “futuro”, para
perpassar, fugaz, e precipitar-se em passado, quando nós avançarmos para
ele, avançarmos para o que não é, vindos do que passou para o que está
passando, e arrasta o que virá de imediato, puxando depois de si outros
porvires. Esses tempos, não é a mensuração que os cria, nem é, na
verdade, a mensuração que os rege. Também a mensuração é nossa, é ato, é
manifestação de dinâmica e, afinal, de vida. Desta muito prezada e
muito precária humana vida nossa³.
Passado,
presente e futuro, nessa perspectiva, articulam-se e influenciam-se
mutuamente. O tempo social os encontra com a predominância ora de um,
ora de outro, mas sem abdicar de nenhum, pois além de sermos viventes,
somos conviventes. Convivemos com o legado de nossos ancestrais e
convivemos com as repercussões ou precipitações do possível.
O
conceito, então, fala por si no que tange à sua relação com o
conservadorismo, mas eu gostaria de ressaltar que a genialidade de
Freyre a que fiz referência converge para tal corrente de pensamento
devido a uma característica que as une numa base anterior a da
teorização: o realismo. Tanto o pensamento de Gilberto Freyre quando o
conservadorismo são realistas, rejeitam tanto a utopia quanto o
saudosismo caricato, pois, nestes dois casos, o que temos são posturas
artificiais. As transformações das estruturas sociais, econômicas e
políticas devem beber em elementos do passado com capacidade de
permanência4, ou a renovação será uma aposta arriscada, como
provaram as tentativas de engenharia social do século passado
(vinculadas a regimes autoritários) e a quase anomia pela falta de nexos
de união em que o antigo Ocidente foi jogado pelo liberalismo (isso
pode ser facilmente verificado pela inflação normativa que atinge os
países dessa parte do mundo).
Para
os conservadores, ordem, justiça e liberdade são produtos artificiais
de uma longa experiência social, o resultado de séculos de tentativas,
reflexão e sacrifício, de modo que sua manutenção requer cuidados
sérios, não se podendo “brincar” nesse âmbito, sob a pena de ver tudo
desmoronar com rapidez. O governo da civitas, mediante esse tratamento, inclui, nos seus domínios, o que deve ou pode vir a ser, tanto quanto o que é e o que foi.
Tal característica também é convergente com a Doutrina Social da Igreja Católica, que desde a Rerum Novarum
(encíclica de Leão XIII que iniciou a reflexão sobre a aplicação do
Evangelho aos problemas socioeconômicos do mundo moderno) rejeita com a
mesma ênfase as falsas soluções do marxismo, com sua negativa de
direitos naturais – como o de propriedade – e o canto de sereia do
dinheirismo capitalista, com sua postura contrária à tendência
cooperativista da dinâmica social (presente em entidades como a família e
os sindicatos, por exemplo). Observem que a tônica em ambas as
rejeições deve-se ao apego à realidade, pois esta nos mostra que a
propriedade é nada mais que o trabalho acumulado e que a perspectiva de
ver o esforço transformado em algo duradouro é um dos principais
motivadores da responsabilidade entre os homens, e que a fragilidade de
nossa condição neste verdadeiro “vale de lágrimas”, como diz a Salve Regina, pede a ajuda mútua.
Vemos, portanto, que não precisamos recorrer só a autores estrangeiros para formular uma aplicação nacional do conservadorismo na
sua vertente cristã. Aliás, como já fiz referência, nesse caso não
estaríamos tratando de algo puramente teórico, na verdade teríamos uma
mera interpretação daquilo que é percebido, sentido e vivido pela
maioria silenciosa de nosso país. Teríamos uma construção em cima do que
é real, e não uma tentativa de modificar a sociedade com base numa
proposta abstrata. O conservadorismo não é uma ideologia, mas um tipo de
olhar sobre a ordem social como ela é de fato.
E
Gilberto Freyre, nesse sentido, foi um verdadeiro intérprete do Brasil,
num tempo em que isso soava transgressor, mas que, na verdade, apenas
era a reação a ideologias revolucionárias de toda ordem (positivismo,
racialismo, liberalismo, etc) que infestavam nossa vida social e geravam
toda sorte de rejeição internalizada do que era próprio da terra. Sim, o
Mestre de Apipucos, mesmo usando roupa de hippie, foi um reacionário,
pois reacionário é aquele que reage!
Será,
então, que o caráter cínico que as eleições assumiram não deriva do
fato de que nenhum candidato tenta interpretar a alma nacional? Será que
decisões judiciais e leis que fazem pouco de nossas raízes, isto é, não
convivem com os que nos legaram a pátria, não são também causa do
sentimento de injustiça que assola o país? Um futuro que se constrói em
descompasso com o presente e o passado não já está mandando recados de
que se será desastroso?
Todas
essas são questões que Burke tentou responder na sua época para seu
contexto particular e que agora nos afligem com força maior. Hoje,
contudo, podemos ir além, podemos ir “além do apenas moderno”, pois no
pensamento de Freyre encontramos sugestões fecundas, caracterizadas pela
agilidade e liberdade de uma concepção fenomenológica que não se deixa
amarrar a uma tese fixa e imutável5, mas tira da mobilidade sua força e capacidade de interpretação. Vamos, então, ficar parados ou reagir?
Notas:
¹
“Brasil profundo” é expressão utilizada por alguns pensadores
brasileiros, notadamente Plínio Corrêa de Oliveira, para se referir ao
“Brasil de verdade”, o Brasil do povo, que não é o mesmo passado pela
mídia ou vivido pelos políticos.
² FREYRE, Gilberto. Futurologia. In: Antecipações. Recife: EDUPE, 2001, p. 171 – Coleção Nordestina.
³ DANTAS, Pedro. Depoimento sobre Gilberto Freyre. In: Convivência. Rio de Janeiro, n. 2, 1976/1977, pp. 34-39.
4 REBELO, Aldo. Cem anos de Gilberto Freyre. Um homem que entendeu o Brasil.
5 DANTAS, Pedro. 1976/1977, pp. 34-39
Thiago Moraes é advogado
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