sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

É Proibido Proibir



Por Mario Vargas Llosa





Já faz alguns anos vi em Paris, na televisão francesa, um documentário que ficou gravado em minha memória; de vez em quando os acontecimentos cotidianos atualizam suas imagens e lhes conferem estrondosa vigência, sobretudo quando se fala do problema cultural maior de nossos dias: a educação. 

O documentário descrevia a problemática de um colégio na periferia de Paris, um desses bairros onde famílias francesas empobrecidas convivem com imigrantes de origem subsaariana ou latino-americana e com árabes do Magreb. Esse colégio secundário público, cujos alunos, de ambos os sexos, constituíam um arco-íris de raças, línguas, costumes e religiões, fora cenário de violências: surras em professores, estupros nos banheiros ou corredores, confrontos entre bandos com facadas e pauladas e, se bem me lembro, até tiroteios. Não sei se de tudo isso resultara algum morto, mas sei que alguns feridos, e nas buscas feitas no local a polícia apreendera armas, drogas e álcool. 

O documentário não queria ser alarmista, e sim tranquilizador, mostrando que o pior já havia passado e que, com a boa vontade de autoridades, professores, pais de família e alunos, as águas estavam se acalmando. Por exemplo, com indisfarçável satisfação, o diretor ressaltava que, graças ao detector de metais recém-instalado, pelo qual agora os estudantes precisavam passar ao entrarem no colégio, era possível confiscar socos-ingleses, facas e outras armas perfurocortantes. Desse modo, os atos sangrentos haviam sido drasticamente reduzidos. Tinham sido baixadas instruções para que professores e alunos não circulassem sozinhos, nem mesmo nos banheiros, que sempre estivessem pelo menos em grupos de dois. Desse modo evitavam-se assaltos e emboscadas. E, agora, o colégio tinha dois psicólogos permanentes para dar aconselhamento a alunos e alunas inadaptáveis ou desordeiros recalcitrantes —  quase sempre órfãos de pai ou mãe, vindos de famílias desestruturadas pelo desemprego, pela promiscuidade, pela delinquência e pela violência de gênero. 

O que mais me impressionou no documentário foi a entrevista de uma professora que afirmava, com naturalidade, algo como: “Tout va bien, maintenant, mais il faut se débrouiller” (“Agora tudo vai bem, mas a gente precisa se virar”). Explicava que, para evitar os assaltos e as surras de antes, ela e um grupo de professores tinham combinado encontrar-se em hora certa na estação de metrô mais próxima e caminharem juntos até o colégio. Desse modo o risco de agressões pelos voyous (vadios) diminuía. Aquela professora e seus colegas, que iam diariamente para o trabalho como quem vai para o inferno, estavam resignados, tinham aprendido a sobreviver e não pareciam nem sequer imaginar que exercer a docência pudesse ser algo diferente de sua via-crúcis cotidiana.

Naqueles dias, estava terminando de ler um dos amenos e sofísticos ensaios de Michel Foucault em que, com seu brilhantismo habitual, o filósofo francês afirmava que, assim como a sexualidade, a psiquiatria, a religião, a justiça e a linguagem, o ensino sempre fora, no mundo ocidental, uma das “estruturas de poder” erigidas para reprimir e domesticar o corpo social, instalando sutis mas eficazes formas de sujeição e alienação, a fim de garantir a perpetuação  dos privilégios e o controle do poder dos grupos sociais dominantes. Bom, pelo menos no campo do ensino, a partir de 1968 a autoridade castradora dos instintos libertários dos jovens havia ido pelos ares. Mas, a julgar por aquele documentário, que poderia ter sido filmado em muitos outros lugares da França e de toda Europa, a derrocada e o desprestígio da própria ideia de professor e de magistério — e, em última instância, de qualquer forma de autoridade — não pareciam ter traído a libertação criativa do espírito juvenil, mas, ao contrário, transformado os colégios assim liberados em instituições caóticas, no melhor dos casos, e, no pior, em pequenas satrapias de valentões e delinquentes precoces.

É evidente que maio de 68 não acabou com a “autoridade”, que já fazia tempo vinha passando por um processo de debilitação generalizada em todas as esferas, desde a política até a cultural, sobretudo no campo da educação. Mas a revolução dos filhos de gente bem, a fina flor e a nata das classes burguesas e privilegiadas da França, que foram os protagonistas daquele divertido carnaval que proclamou como um dos lemas do movimento “É proibido proibir!”, estendeu ao conceito de autoridade sua certidão de óbito. E deu legitimidade e glamour à ideia de que toda autoridade é suspeita, perniciosa e desprezível, e de que o ideal libertário mais nobre é desconhecê-la, negá-la e destruí-la. O poder não foi minimamente afetado com essa insolência simbólica dos jovens rebeldes que, com o desconhecimento de sua imensa maioria, levaram para as barricadas os ideais iconoclastas de pensadores como Foucault. Basta recordar que nas primeiras eleições realizadas na França depois de maio de 68, a direita gaullista obteve esmagadora vitória.

Mas a autoridade, no sentido romano de auctoritas — não de poder, mas, como define o Diccionario da Real Academia Espanhola, em sua terceira acepção, de “prestígio e crédito que se reconhece a uma pessoa ou instituição por sua legitimidade ou por sua qualidade e competência em alguma matéria” —, essa não voltou a levantar a cabeça. Desde então, tanto na Europa como em boa parte do resto do mundo, são praticamente inexistentes as figuras políticas e culturais que exercem aquela ascendência, moral e intelectual ao mesmo tempo, da “autoridade” clássica que, em nível popular, era encarnada nos mestres, palavra que então soava tão bem porque associada ao saber e ao idealismo. Em nenhum campo isso foi tão catastrófico para a cultura quanto na educação. O mestre, despojado de credibilidade e autoridade, muitas vezes transformado, do ponto de vista progressista, em representante do poder repressivo — ou seja, no inimigo ao qual era preciso resistir e que se devia até mesmo abater, caso se quisesse alcançar a liberdade e a dignidade humana —, não só perdeu a confiança e o respeito sem os quais era impossível cumprir eficazmente sua função de educador — de transmissor tanto de valores como de conhecimentos — perante seus alunos, como também o dos próprios pais de família e de filósofos revolucionários que, à maneira do autor de "Vigiar e punir", nele encarnaram um daqueles sinistros instrumentos — como os carcereiros e os psiquiatras dos manicômios —, dos quais o establishment se vale para coibir o espírito crítico e a sã rebeldia de crianças e adolescentes.

Muitos mestres, de boa-fé, deram crédito a essa satanização de si mesmos e, pondo lenha na fogueira, contribuíram para aumentar o estrago, aderindo a algumas das mais disparatadas consequências da ideologia de maio de 68 no que se refere à educação, como considerar aberrante a reprovação dos maus alunos, a repetição de ano e até mesmo a atribuição de notas e o estabelecimento de uma ordem de preferência no rendimento escolar dos estudantes, pois, fazendo semelhantes distinções, se propagariam a nefasta noção de hierarquias, o egoísmo, o individualismo, a negação da igualdade e o racismo. É verdade que esses extremos não chegaram a afetar todos os setores da vida escolar, mas uma das perversas consequências do triunfo das ideias — das diatribes e fantasias — de maio de 68 foi que, como resultado disso, se acentuou brutalmente a divisão de classes a partir das salas de aula.

A civilização pós-moderna desarmou moral e politicamente a cultura de nosso tempo, e isso explica em boa parte por que alguns dos “monstros” que acreditávamos extintos para sempre depois da Segunda Guerra Mundial, como o nacionalismo mais extremista e o racismo, ressuscitaram e estão de novo rondando no próprio coração do Ocidente, ameaçando mais uma vez seus valores e princípios democráticos.

O ensino público foi uma das grandes conquistas da França democrática, republicana e laica. Em suas escolas e colégios, de altíssimo nível, as levas de alunos gozavam de uma igualdade de oportunidades que, a cada nova geração, corrigia as assimetrias e os privilégios de família e de classe, abrindo para crianças e jovens dos setores mais desfavorecidos o caminho do progresso, do sucesso profissional e do poder político. A escola pública era um poderoso instrumento de mobilidade social.

O empobrecimento e a desordem pela qual passou o ensino público, tanto na França quanto no restante do mundo, conferiram ao ensino privado (ao qual, por razões econômicas, só tem acesso um setor social minoritário de alta renda, que sofreu menos os estragos da suposta revolução libertária) papel preponderante na formação dos dirigentes políticos, profissionais e culturais de hoje e do futuro. Nunca foi tão certo o dito “nunca se sabe para quem se está trabalhando”. Acreditando trabalhar para construir um mundo realmente livre, sem repressão, alienação e autoritarismo, os filósofos libertários como Michel Foucault e seus inconscientes discípulos atuaram com muito acerto para que, graças à grande revolução educacional que propiciaram, os pobres continuassem pobres, os ricos continuassem ricos, e os inveterados donos do poder, com o chicote nas mãos.

Não é arbitrário citar o caso paradoxal de Michel Foucault. Suas intenções críticas eram sérias, e seu ideal libertário, inegável. Sua repulsa pela cultura ocidental — que, com todas as suas limitações e desvios, mais fez progredir a liberdade, a democracia e os direitos humanos na história — o induziu a acreditar que seria mais factível encontrar a emancipação moral e política apedrejando policiais, frequentando as saunas gays de San Francisco ou os clubes sadomasoquistas de Paris, do que nas salas de aula ou nas urnas eleitorais. E, em sua paranoica denúncia dos estratagemas de que, segundo ele, o poder se valia para submeter a opinião pública a seus ditames, ele negou até o final a realidade da AIDS — doença que o matou — como mais um logro do establishment e de seus agentes científicos para aterrorizar os cidadãos, impondo-lhes a repressão sexual. Seu caso é paradigmático: o mais inteligente pensador de sua geração, ao lado da seriedade com que empreendeu suas investigações em diversos campos do saber — história, psiquiatria, arte, sociologia, erotismo e, claro, filosofia —, sempre teve uma vocação iconoclasta e provocadora (em seu primeiro ensaio pretendera  demonstrar que “o homem não existe”) que a intervalos se transformava em mera insolência intelectual, gesto desprovido de seriedade. Também nisso Foucault não esteve só, mas assumiu o preceito de toda uma geração, que marcaria como ferrete a cultura de seu tempo: a propensão ao sofisma e ao artifício intelectual.

Essa é outra razão da perda de “autoridade” de muitos pensadores de nosso tempo: não eram sérios, brincavam com as ideias e as teorias como os malabaristas dos circos brincam com lenços e clavas, que divertem e até causam admiração, mas não convencem. No campo da cultura, chegaram a produzir uma curiosa inversão de valores: a teoria, ou seja, a interpretação chegou a substituir a obra de arte, a tornar-se sua razão de ser. O crítico importava mais que o artista, era o verdadeiro criador. A teoria justificava a obra de arte, esta existia para ser interpretada pelo crítico, era algo assim como uma hipóstase da teoria. Esse endeusamento da crítica teve o paradoxal efeito de ir afastando cada vez mais a crítica cultural do grande público, inclusive do público culto, mas não especializado, e foi um dos fatores mais eficazes da frivolização da cultura de nossos dias. Aqueles teóricos expunham suas teorias frequentemente com um jargão esotérico, pretensioso e muitas vezes oco e desprovido de originalidade e profundidade, a tal ponto que o próprio Foucault, que algumas vezes também incorreu nele, o chamou de “obscurantismo terrorista”.

Mas o conteúdo delirante de certas teorias pós-modernas — o desconstrucionismo, em especial — às vezes era mais grave que o obscuro da forma. A tese comungada por quase todos os filósofos pós-modernos, mas exposta principalmente por Jacques Derrida, sustentava que é falsa a crença de que a linguagem expressa a realidade. Na verdade, as palavras se expressam a si mesmas, dão “versões”, máscaras, disfarces da realidade, e, por isso, a literatura, em vez de descrever o mundo, só descreve a si mesma, é uma sucessão de imagens que documentam as diversas leituras da realidade dadas pelos livros, com o uso dessa matéria subjetiva e enganosa que é sempre a linguagem.

Os desconstrucionistas subvertem desse modo nossa confiança em qualquer verdade, na crença de que existam verdades lógicas, éticas, culturais ou políticas. Em última instância, nada existe fora da linguagem, que é o que constrói o mundo que acreditamos conhecer, que nada mais é que uma ficção fabricada pelas palavras. Daí só havia um pequeno passo para se afirmar, como fez Roland Barthes, que “toda linguagem é fascista”. O realismo não existe e nunca existiu, segundo os desconstrucionistas, pela simples razão de que a realidade tampouco existe para o conhecimento; ela nada mais é que um emaranhado de discursos que, em vez de expressá-la, ocultam-na ou dissolvem-na num tecido escorregadio e inapreensível de contradições e versões que se relativizam e se negam reciprocamente. O que existe, então? Os discursos, a única realidade apreensível para a consciência humana, discursos que remetem uns aos outros, mediações de uma vida ou de uma realidade que só podem chegar a nós através dessas metáforas ou retóricas cujo protótipo máximo é a literatura. Segundo Foucault, o poder utiliza essas linguagens para controlar a sociedade e matar no embrião qualquer tentativa de solapar os privilégios do setor dominante que tal poder serve e representa. Essa talvez seja uma das teses mais controvertidas do pós-modernismo. Porque, na verdade, a tradição mais viva e criativa da cultura ocidental não foi nada conformista, mas precisamente o contrário: um questionamento incessante de tudo o que existe. Ela foi, isso sim, inconformada, crítica tenaz do estabelecido, e, de Sócrates a Marx, de Platão a Freud, passando por pensadores e escritores como Shakespeare, Kant, Dostoiévski, Joyce, Nietzsche, Kafka, elaborou ao longo da história mundos artísticos e sistemas de ideias que se opunham radicalmente a todos os poderes entronizados. Se só fôssemos as linguagens impostas pelo poder, nunca teria nascido a liberdade e nem teria havido evolução histórica, nunca teria brotado a originalidade literária e artística.

Evidentemente, não faltaram reações críticas às falácias e aos excessos intelectuais do pós-modernismo. Por exemplo, sua tendência a proteger-se e obter certa invulnerabilidade para suas teorias valendo-se de linguagem científica sofreu duro revés quando dois cientistas de verdade, os professores Alan Sokal e Jean Bricmont, publicaram em 1998 Imposturas intelectuais, uma contundente demonstração do uso irresponsável, inexato e muitas vezes cinicamente fraudulento das ciências, presente em ensaios de filósofos e pensadores tão prestigiados como Jacques Lacan, Julia Kristeva, Luce Irigaray, Bruno Latour, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio, entre outros. Deve-se lembrar que anos antes — em 1957 —, em seu primeiro livro, Pourquoi des philosophes?, Jean-François Revel denunciara com virulência o emprego de estilos abstrusos e falazmente científicos pelos pensadores mais influentes da época para ocultar a insignificância de suas teorias ou a própria ignorância.

Outra crítica severa às teorias e teses da moda pós-moderna foi Gertrude Himmelfarb, que, numa polêmica coleção de ensaios intitulada On Looking Into the Abyss [Olhando o abismo] (Nova York, Alfred A. Knopf, 1994), investiu contra aquelas e, sobretudo, contra o estruturalismo de Michel Foucault e o desconstrucionismo de Jacques Derrida e Paul de Man, correntes de pensamento que lhe pareciam vazias, se comparadas com as escolas tradicionais de crítica literária e histórica.

Seu livro é também uma homenagem a Lionel Trilling, autor de The liberal imagination (1950) e de muitos outros ensaios sobre cultura, que exerceram grande influência na vida intelectual e acadêmica do pós-guerra nos Estados Unidos e na Europa, hoje lembrado por poucos e quase não lido. Trilling não era liberal no plano econômico (nesse campo, estava mais ligado a teses social-democratas), mas sim no político — em vista de sua defesa ferrenha da virtude, para ele suprema, da tolerância e da lei como instrumento de justiça — e sobretudo no cultural, com sua fé nas ideias como motor do progresso e sua convicção de que as grandes obras literárias enriquecem a vida, melhoram os homens e são o alimento da civilização.

Para um pós-moderno estas crenças parecem de uma ingenuidade angelical ou de uma estupidez supina, a tal ponto que ninguém se dá nem o trabalho de refutá-las. A professora Himmelfarb mostra que, apesar dos poucos anos que separam a geração de Lionel Trilling das de Derrida ou Foucault, há um verdadeiro abismo intransponível entre aquele, convicto de que a história humana é uma só, o conhecimento é uma empresa totalizadora, o progresso é uma realidade possível, e a literatura é uma atividade da imaginação com raízes na história e projeções na moral, e os que relativizaram as noções de verdade e valor até as transformarem em ficções, entronizando como axioma que todas as culturas se equivalem, dissociando literatura de realidade e confinando-a num mundo autônomo de textos que remetem a outros textos sem nunca se relacionarem com a experiência vivida.

Não concordo com a desvalorização de Foucault por parte de Gertrude Himmelfarb. Com todos os sofismas e exageros que possam ser criticados nele, como, por exemplo, suas teorias sobre as “estruturas de poder” implícitas em toda linguagem — o que, segundo o filósofo francês, transmitiria sempre as palavras e ideias que privilegiem os grupos sociais hegemônicos —, Foucault contribuiu de maneira decisiva para conferir direito de inserção na vida cultural de certas experiências marginais e excêntricas (sexualidade, repressão social, loucura). Mas as críticas de Himmelfarb aos estragos que a desconstrução causou no âmbito das humanidades me parecem irrefutáveis. Aos desconstrucionistas devemos, por exemplo, o fato de em nossos dias já ser quase inconcebível falar de humanidades, para eles sintoma de obsolescência intelectual e de cegueira científica.

Toda vez que enfrentei a prosa obscurantista e as asfixiantes análises literárias ou filosóficas de Jacques Derrida tive a sensação de estar perdendo miseramente o meu tempo. Não por acreditar que todo ensaio de crítica deva ser útil — se for divertido ou estimulante me basta —, mas porque, se a literatura for o que ele supõe — uma sucessão ou arquipélago de textos autônomos, impermeabilizados, sem contato possível com a realidade exterior, portanto imunes a qualquer valoração e inter-relação com o desenvolvimento da sociedade e o comportamento individual —, qual é a razão de desconstruí-los? Para que esses laboriosos esforços de erudição, de arqueologia retórica, essas árduas genealogias linguísticas, aproximando ou distanciando um texto de outro até constituir essas artificiosas desconstruções intelectuais que são como que vazios animados? Há uma incongruência absoluta no labor crítico que começa proclamando a inépcia essencial da literatura para influir na vida (ou para sofrer sua influência) e para transmitir verdades de qualquer índole, associáveis à problemática humana, e depois se dedica com tanto afã a esmiuçar esses monumentos de palavras inúteis, frequentemente com uma ostentação intelectual insuportavelmente pretensiosa. Quando discutiam o sexo dos anjos, os teólogos medievais não perdiam tempo: por trivial que parecesse, essa questão para eles se vinculava de algum modo a assuntos graves, como a salvação ou a condenação eterna. Mas desmontar uns objetos verbais cuja montagem se considera, no melhor dos casos, uma intensa ninharia formal, uma gratuidade verbosa e narcisista que nada ensina sobre nada, a não ser sobre ela mesma, e que carece de moral, isso é fazer da crítica literária uma atividade gratuita e solipsista.

Não é de estranhar que, depois da influência exercida pela desconstrução em tantas universidades ocidentais (e, de maneira especial, nos Estados Unidos), os departamentos de literatura começassem a esvaziar-se de alunos, que neles se infiltrassem tantos embusteiros, e que haja cada vez menos leitores não especializados para os livros de crítica literária (que precisam ser buscados com lupa nas livrarias, não sendo raro encontrá-los em recessos sebentos, entre manuais de judô e caratê ou horóscopos chineses). 

Para a geração de Lionel Trilling, por outro lado, a crítica literária relacionava-se com as questões centrais do fazer humano, pois via na literatura o testemunho por excelência das  ideias, dos mitos, das crenças e dos sonhos que fazem a sociedade funcionar, bem como das secretas frustrações ou estímulos que explicam a conduta individual. Sua fé nos poderes da literatura sobre a vida era tão grande que, num dos ensaios de The liberal imagination (Imaginação liberal), Trilling se perguntava se o mero
ensino da literatura não é já, em si, uma maneira de desvirtuar o objeto de estudo. Seu argumento se resumia no seguinte caso: “Pedi a meus alunos que ‘olhassem o abismo’ (as obras de Eliot, Yeats, Joyce, Proust), e eles, obedientes, o fizeram, tomaram notas e depois comentaram: muito interessante, não?” Em outras palavras, a academia congelava, tornava superficial e transformava em saber abstrato a trágica e revulsiva humanidade contida naquelas obras de imaginação, privando-as de sua poderosa força vital, de sua capacidade de revolucionar a vida do leitor. A professora Himmelfarb indica com melancolia toda a água que rolou desde que Lionel Trilling expressava escrúpulos de despojar a literatura de alma e poder ao transformá-la em matéria de estudo, até a alegre ligeireza com que Paul de Man, vinte anos mais tarde, se valeria da crítica literária para desconstruir o Holocausto, numa operação intelectual não muito distante da dos historiadores revisionistas empenhados em negar o extermínio de 6 milhões de judeus pelos nazistas.

Esse ensaio de Lionel Trilling sobre o ensino da literatura eu reli várias vezes, principalmente quando precisei atuar como professor. É verdade que há algo de enganoso e paradoxal em reduzir a uma exposição pedagógica, com ares inevitavelmente esquemáticos e impessoais, e a deveres escolares que, ainda por cima, é preciso conceituar, obras de imaginação que nasceram de experiências profundas e, às vezes, dilacerantes, com verdadeiras imolações humanas, cuja autêntica valoração não pode ser feita na tribuna de um auditório, mas na ensimesmada intimidade da leitura, e só pode ser cabalmente medida pelos efeitos e repercussões que têm na vida pessoal do leitor. 

Não me lembro de nenhum professor meu de literatura que me fizesse sentir que um bom livro nos aproxima do abismo da experiência humana e de seus efervescentes mistérios. Os críticos literários, em compensação, sim. Lembro-me principalmente de um, da mesma geração de Lionel Trilling, que em mim produziu efeito semelhante ao que este exerceu sobre Gertrude Himmelfarb, contagiando-me com sua convicção de que o pior e o melhor da aventura humana sempre passam pelos livros, e de que eles ajudam a viver. Refiro-me a Edmund Wilson, cujo extraordinário ensaio sobre a evolução das ideias socialistas e sua literatura, desde que Michelet descobriu Vico até a chegada de Lenin a São Petersburgo, Rumo à estação Finlândia, caiu em minhas mãos no tempo de estudante. Nessas páginas de estilo diáfano, pensar, imaginar e inventar com o uso da pluma é uma forma magnífica de atuar e imprimir uma marca na história; em cada capítulo se comprova que as grandes convulsões sociais ou os miúdos destinos individuais estão visceralmente articulados com o impalpável mundo das ideias e das ficções literárias.

Edmund Wilson não teve o dilema pedagógico de Lionel Trilling no que se refere à literatura, pois nunca quis ser professor universitário. Na verdade, exerceu um magistério muito mais amplo do que os delimitados pelos recintos acadêmicos. Seus artigos e resenhas eram publicados em revistas e jornais (algo que um crítico desconstrucionista consideraria uma forma extrema de degradação intelectual), e alguns de seus livros — como o que trata dos manuscritos encontrados no mar Morto — foram reportagens para The New Yorker. Mas escrever para o grande público leigo não lhe reduziu o rigor nem a ousadia intelectual; ao contrário, obrigou-o a tentar ser sempre responsável e inteligível na hora de escrever. 

Responsabilidade e inteligibilidade andam de mãos dadas com certa concepção de crítica literária, com a convicção de que o âmbito da literatura abarca toda a experiência humana — pois a reflete e contribui decisivamente para modelá-la — e de que, por isso mesmo, ela deveria ser patrimônio de todos, atividade que se alimenta no fundo comum da espécie e à qual se pode recorrer incessantemente em busca de ordem quando parecemos imersos no caos, de alento em momentos de desânimo e de dúvidas e incertezas quando a realidade que nos cerca parece excessivamente segura e confiável. Inversamente, se se achar que a função da literatura é apenas contribuir para a inflação retórica de um campo especializado do conhecimento, e que poemas, romances e dramas proliferam com o único objetivo de produzir certas perturbações formais no corpo linguístico, o crítico poderá, à maneira de tantos pósmodernos, entregar-se impunemente aos prazeres do desatino conceitual e à obscuridade de expressão.

Do livro: "A Civilização do Espetáculo"

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