A  greve dos professores da rede pública de ensino do Estado de Goiás fez  aflorar uma tese recorrente no imaginário social – a de que os políticos  não investem em educação para manter o povo na ignorância e, dessa  forma, poder manipulá-lo com mais facilidade. Isso pode ter sido verdade  no antigo sertão de Paulo Honório, o personagem-narrador do romance São Bernardo,  de Graciliano Ramos, que não gostava de ver a própria mulher, a  professora Madalena, ensinando os cabras de seu latifúndio conquistado  mediante esbulho. 
Hoje, a realidade é bem outra: quem deseja manter o  povo na ignorância não são os políticos – são os mestres e doutores  universitários. Eles criaram na pós-graduação das universidades uma  ciência esotérica e inútil, mas paradoxalmente militante, cujo principal  propósito não é o ensino, mas a manipulação. E as primeiras vítimas  dessa educação malsã são os professores da escola básica – tratados com  evidente menosprezo nas dissertações e teses da academia.
Encastelados  especialmente nas universidades públicas, os coronéis do conhecimento  (exibindo suas vistosas patentes de “doutor” na Plataforma Lattes) não  costumam aceitar críticas. Sua reação a elas varia da fingida  indiferença à descabelada indignação. E se a crítica parte de quem não é  acadêmico, a atitude dos coronéis de beca tende a ser a mesma dos  velhos coronéis de bacamarte: “Você sabe com quem está falando?” Foi  essa a reação ao meu artigo “O fracasso do mérito”, publicado na edição  passada do Jornal Opção,  tratando da greve dos professores da rede estadual de ensino.  Imaginando que sou leigo no assunto, alguns acadêmicos reagiram de modo  risível nas redes sociais e no próprio espaço de comentários do jornal.  Um deles, mestre em educação pela UFG e doutorando em educação pela PUC  de Goiás, depois de indagar a um oponente que defendia o meu artigo se o  mesmo tinha mestrado ou doutorado, chegou a afirmar textualmente:  “Conversar sobre meritocracia com quem não tem nem currículo na  Plataforma Lattes e são apenas graduados é difícil demais. Esta é a  verdade”.
Como  não chega a ser um coronel acadêmico de alta patente, com um exército  de orientandos na pós-graduação, o autor dessa afirmação merece ser  preservado de si mesmo e não vou revelar o seu nome. Mas o menosprezo  que ele manifesta em relação a quem não tem título de doutor ou mestre é  um espelho fiel da velha cultura do bacharelismo, que, ao contrário do  que se imagina, ficou ainda mais grave com a expansão dos cursos de  pós-graduação nas duas últimas décadas. Antes, a cultura dos bacharéis  era um vírus que atacava apenas médicos, advogados e engenheiros; hoje,  ela se disseminou por todas as áreas do conhecimento, a ponto de alunos  de graduação e especialização lato sensu  encherem a boca para falar do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) e do  título que ele possibilita, uma espécie de patente de cabo na  hierarquia da caserna acadêmica. É o diploma substituindo o mérito em  vez de expressá-lo.
Criança avalia professor
 
Paradoxalmente,  essa universidade que se protege atrás de uma hierárquica barreira de  títulos é a mesma universidade que despe o professor da escola básica de  qualquer autoridade institucional e o obriga a se apresentar como um  igual – ou até mesmo um inferior – diante de seus alunos. Hoje, nas  escolas públicas, a inversão de valores é tanta que já não é o professor  quem avalia o aluno, mas o aluno quem avalia o professor. É o que se  constata no “Manual de Orientação para a Avaliação de Estágio Probatório  dos Docentes da Secretaria Estadual de Educação”, um documento de 57  páginas, elaborado por 19 gestores com formação acadêmica e publicado em  2008. Como se sabe, de acordo com o artigo 41 da Constituição, todo  servidor concursado só adquire estabilidade após um estágio probatório  de três anos, em que passa por avaliações periódicas e, se não for  aprovado, perde o cargo. Ou seja, o estágio probatório é algo  extremamente sério, pois decide a própria vida profissional do servidor.
Agora,  pasmem: na Secretaria Estadual de Educação, alunos de apenas 11 anos de  idade, representando turmas de 5ª série (6º ano) do ensino fundamental,  participam das comissões que avaliam o professor concursado em estágio  probatório. Uma criança dessa idade é chamada a decidir o próprio  destino profissional de um pai ou mãe de família que passou num concurso  público, tem até pós-graduação e, sobretudo, é uma pessoa adulta, que –  em nenhuma circunstância – pode ser avaliada por uma simples criança.  Para se ter uma ideia da avacalhação a que o professor da escola básica é  submetido – com a cumplicidade dos intelectuais universitários – a  ficha de avaliação do professor que a criança de 5ª série preenche  (Ficha II) é idêntica à que é preenchida pelo professor-coordenador da  escola (Ficha I), pelo próprio professor que está sendo avaliado (Ficha  III) e até pelo presidente da comissão de avaliação (Ficha IV).
O  representante dos alunos – que, repito, pode ter apenas 11 anos de idade  – atribui uma nota de 0 a 10 ao professor em cinco requisitos:  idoneidade moral; assiduidade e pontualidade; disciplina; eficiência e  aptidão. E a criança, a exemplo dos adultos, tem de justificar cada nota  dada em um por um dos requisitos que estão sendo avaliados. Em relação à  “eficiência”, o manual explica para todos os avaliadores, inclusive a  criança, que se trata da “ação competente e criativa do professor para  atingir com eficácia os objetivos propostos pela Unidade Escolar e pela  Secretaria, na busca de resultados com qualidade”. Ora, como é que um  aluno de 11 anos poderá saber se o professor que lhe ministra as aulas  atingiu com eficácia as diretrizes propostas pela Secretaria de  Educação? E com que critério uma escola aceita que uma criança seja  eleita para falar em nome dos colegas num assunto de tamanha gravidade,  instituindo uma espécie de meritocracia do acaso? Só mesmo uma pedagogia  ideologicamente embriagada – que não tem o menor respeito por si mesma –  pode obrigar um professor a se ajoelhar dessa forma aos pés da criança  que tem por aluno. Os médicos concursados da rede pública de saúde  também se submetem a estágio probatório; mas é possível imaginar um  pediatra sendo avaliado profissionalmente por crianças de 11 anos?
Reizinho indisciplinado
 
Por  que o Sintego (Sindicato dos Trabalhadores da Educação no Estado de  Goiás) nunca denunciou essa forma de avaliação do estágio probatório da  rede estadual de ensino? Não resta dúvida que esse tipo de tratamento  dado ao professor – que é regra, não exceção – chega a ser mais  deletério em sua carreira profissional do que os baixos salários. Muitos  profissionais de comunicação, por exemplo, ganham igual ou menos do que  o professor e não têm estabilidade no emprego, mas submetem-se a  precárias condições de trabalho apenas pelo relativo prestígio que a  profissão oferece. Já o professor, na maioria das vezes em que faz  greve, pensa menos no aumento de salário do que no tempo em que ficará  livre dos alunos e seus celulares ubíquos. Creio que muitos nem se dão  conta disso quando aderem ao movimento grevista, mas só o descanso que a  greve oferece pode explicar a insistência com que paralisam as  atividades quase todo ano, mesmo sabendo que, ao cabo do movimento, as  conquistas são ínfimas e muitas vezes se reduzem a não ter os pontos  cortados. Se o professor se sentisse realizado em seu trabalho, com  alunos e pais que o valorizassem, é provável que, mesmo ganhando pouco,  relutaria em fazer greve.
Todavia,  como é que pais e alunos vão valorizar o professor da escola básica se  as próprias universidades não o respeitam e insistem em tratá-lo como um  despreparado, que precisa não apenas ser capacitado por elas, mas até  mesmo aprender com os próprios alunos? Infelizmente, o Sintego é  parceiro das faculdades de pedagogia e demais cursos de licenciatura,  com quem professa o pensamento dos derivados modernos e pós-modernos do  marxismo, como Antonio Gramsci (1891-1937), Lev Vygotsky (1896-1934),  Paulo Freire (1921-1997), Michel Foucault (1926-1984), Pierre Bourdieu  (1930-2002) e Emilia Ferreiro (1936), entre vários outros. Todos os  mestres e doutores contemporâneos que se filiam a essas ou outras  correntes das humanidades têm em comum a crença de que a função da  escola é “construir sujeitos” e “transformar a sociedade”. Daí a unção  do construtivismo de Jean Piaget (1896-1980), que se tornou uma espécie  de religião pedagógica da esquerda, assim como o evolucionismo de  Charles Darwin (1809-1882) é a religião biológica dessa gente.
Nessa  escola idealizada pelas correntes pedagógicas hegemônicas não há espaço  para a responsabilidade. O aluno é um “sujeito de direitos”, isento de  qualquer dever. Logo, todo e qualquer fracasso desse reizinho  indisciplinado é jogado sobre os ombros do professor. É o que se vê, por  exemplo, na Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010, do Conselho  Nacional de Educação, que define as “Diretrizes Curriculares Nacionais  Gerais para a Educação Básica”. Composta de 60 artigos e uma infinidade  de parágrafos, alíneas e incisos, essa resolução – sintomaticamente  publicada na data de aniversário do famigerado Estatuto da Criança e do  Adolescente – é um documento que oscila entre a insanidade e a  arrogância, exigindo do professor o impossível e do aluno, nada. Seus  autores – entre os quais estão algumas sumidades acadêmicas do país,  como o professor Mozart Neves Ramos, um dos pais do movimento “Todos  pela Educação” – deviam ser condenados a aplicá-lo pessoalmente numa  escola de periferia brasileira, ganhando o que ganham os professores da  rede básica. 
As  “Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica” inviabilizam  qualquer proposta de uma escola meritocrática, pois não se pode cobrar  mérito apenas do professor, deixando o aluno à vontade para fazer o que  quer, como ocorre hoje. Mesmo a proposta de premiar os bons alunos, como  prevê o “Pacto pela Educação” do governo Marconi Perillo, tende a não  funcionar. Se o aluno indisciplinado não pode ser suspenso muito menos  expulso da escola, a sala de aula se torna insalubre para o aprendizado e  não há caderneta de poupança para o aluno que dê jeito nisso, como  acredita o secretário estadual de Educação, Thiago Peixoto. 
Sem  contar que, pelos critérios amorais – e até imorais – da pedagogia  moderna, nada impede que um aluno indisciplinado, violento ou drogado,  apenas por um rasgo de bom comportamento, venha a ser premiado com uma  poupança escolar, em detrimento de um aluno bem comportado. A cultura da  imoralidade – cultivada na academia – está arraigada na educação e não  será o esqueminha de aluno de administração da Bain & Company,  importado pelo secretário, que irá mudar essa realidade.
Enganando os pobres
 
Se  o professor tiver de cumprir as Diretrizes Curriculares Nacionais da  Escola Básica, ele não poderá conjugar nenhum outro verbo na vida a não  ser “trabalhar”. E mesmo sem comer, dormir ou amar, cada dia do  professor precisaria ser como um dia do planeta Vênus (243 dias  terrestres) para que ele pudesse dar conta de todas as responsabilidades  que lhe são impostas. Exemplo disso é o artigo 47 das Diretrizes, que  reza: “A avaliação da aprendizagem baseia-se na concepção de educação  que norteia a relação professor-estudante-conhecimento-vida em  movimento, devendo ser um ato reflexo de reconstrução da prática  pedagógica avaliativa, premissa básica e fundamental para se questionar o  educar, transformando a mudança em ato, acima de tudo, político”.  Reparem no caráter imoral dessa resolução: ela deixa claro que o  objetivo da escola não é ensinar o aluno a ler, escrever e contar, mas  usá-lo – “acima de tudo” – como instrumento político, a partir de um  professor transformado em militante.
Os  acadêmicos que escreveram essa resolução – entre eles, a goiana Clelia  Brandão, ex-reitora da PUC de Goiás – deveriam ter a coragem de  sustentar na cara do pedreiro e da faxineira que a função da escola não é  dar ao filho desses operários a formação que seus pais não tiveram e,  sim, usá-lo como massa de manobra da utopia de transformação do mundo. E  quando o pedreiro e a lavadeira perguntassem a esses doutores  universitários se seus próprios filhos também recebem uma educação  “acima de tudo, política”, como a que é oferecida na escola pública, os  acadêmicos deveriam ter a honradez de confessar a verdade: “Não, seu Zé,  não, dona Maria, nossos filhos precisam passar nos concorridos  concursos públicos e nos vestibulares de medicina e direito das  universidades públicas, onde vão estudar de graça, por isso nós os  matriculamos em boas escolas privadas, onde aprendem muita matemática,  português, biologia e química”.
Mas  esses coronéis do conhecimento só têm respeito pela própria patente de  doutor, como fica claro na linguagem utopicamente desabusada das  Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica do Conselho  Nacional de Educação. O seu artigo 55 estabelece que a gestão  democrática da escola “constitui-se em instrumento de horizontalização  das relações, de vivência e convivência colegiada, superando o  autoritarismo no planejamento e na concepção e organização curricular,  educando para a conquista da cidadania plena e fortalecendo a ação  conjunta que busca criar e recriar o trabalho da e na escola”. Como se  vê, o Conselho Nacional de Educação, influenciado pelas universidades,  impõe à escola básica a “horizontalização das relações”, o que significa  igualar completamente professor e aluno, retirando toda autoridade do  mestre; no entanto, não existe nada mais vertical do que a hierarquia da  pós-graduação nas universidades. Um aluno só chega ao doutorado de uma  universidade pública se contar com o apadrinhamento dos coronéis de  beca, pois as linhas de pesquisa nesse nível da pós-graduação são  geridas de modo subjetivo, dependendo de cartas de apresentação de um  doutor para outro.
Inventar a escola
 
Um  exemplo das exigências sobre-humanas que são feitas ao professor está  no parágrafo 3º do artigo 13 das Diretrizes Curriculares Nacionais da  Escola Básica. Diz o texto que “a organização do percurso formativo,  aberto e contextualizado, deve ser construída em função das  peculiaridades do meio e das características, interesses e necessidades  dos estudantes, incluindo não só os componentes curriculares centrais  obrigatórios, previstos na legislação e nas normas educacionais, mas  outros, também, de modo flexível e variável, conforme cada projeto  escolar”, e assegurando, entre outras questões, “a ampliação e  diversificação dos tempos e espaços curriculares que pressuponham  profissionais da educação dispostos a inventar e construir a escola de  qualidade social, com responsabilidade compartilhada com as demais  autoridades que respondem pela gestão dos órgãos do poder público, na  busca de parcerias possíveis e necessárias, até porque educar é  responsabilidade da família, do Estado e da sociedade”. Que norma  prolixa e doentia é essa que manda o professor “inventar” a escola de  qualidade social? Alô, Sintego e Faculdades de Pedagogia, o Conselho  Federal de Medicina ficaria calado diante de uma norma do Ministério da  Saúde que mandasse o médico “inventar” o hospital de qualidade?
Quando  digo que essas diretrizes oscilam entre a arrogância e a insanidade,  estou usando de eufemismo, para evitar um julgamento moral. Pois, no  fundo não são loucas, são charlatãs. Ou é possível levar a sério uma  resolução que fala em “escolha da abordagem didático-pedagógica  disciplinar, pluridisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar pela  escola, que oriente o projeto político-pedagógico e resulte de pacto  estabelecido entre os profissionais da escola, conselhos escolares e  comunidade, subsidiando a organização da matriz curricular, a definição  de eixos temáticos e a constituição de redes de aprendizagem”? Eu queria  ver um dos autores dessa resolução, numa sala de aula, separando  concretamente, em sua prática didático-pedagógica, o que é  “pluridisciplinar” do que é “interdisciplinar” e do que é  “transdisciplinar”. Eis o coronelismo acadêmico exibindo sua patente em  forma de linguagem cuja suposta complexidade é apenas um disfarce para o  vazio do cérebro.
A  resolução diz que a “escolha da abordagem didático-pedagógica” deve  orientar o “projeto político-pedagógico” e, ao mesmo tempo, deve  resultar de “pacto estabelecido entre os profissionais da escola,  conselhos escolares e comunidade”, que, por sua vez, vai subsidiar “a  organização da matriz curricular, a definição de eixos temáticos e a  constituição de redes de aprendizagem”. Ora, um pacto entre os  profissionais da escola e a comunidade já pressupõe a existência de um  “projeto político-pedagógico”; logo, a “escolha da abordagem  didático-pedagógica” vai derivar desse projeto e não orientá-lo.  Inclusive porque a abordagem didática é um insumo da educação que pode  variar de uma aula para outra, enquanto um projeto político-pedagógico é  um conjunto de diretrizes gerais que norteiam todo o ensino num dado  estabelecimento educacional. 
Como  se vê, os autores das Diretrizes Curriculares Nacionais da Escola  Básica, encastelados no Conselho Nacional da Educação, não sabem o que  estão escrevendo. Juntam palavras apenas pelo seu valor ideológico, como  “construção”, “sujeito”, “cidadania”, “pluralidade”, “diversidade” e  outros abracadabras do gênero.
Entretanto,  mesmo diante de todas essas exigências que o Conselho Nacional de  Educação faz ao professor da escola básica, o pedagogo José Carlos  Libâneo – ao criticar o “Pacto pela Educação” do governo estadual – teve  a coragem de indagar: “Onde estão as professoras que dominam os  conteúdos, que sabem pensar, raciocinar, argumentar e têm uma visão  crítica das coisas?” Sem dúvida, o próprio Libâneo – e não Thiago  Peixoto – é quem, olhando-se no espelho, deveria dar resposta a essa  pergunta. 
Afinal,  quem tem de saber onde estão essas professoras são as Faculdades de  Pedagogia, que não fazem outra coisa senão preparar seus graduandos para  um mundo que não existe. Os cursos de formação de professores das  universidades, na maioria dos casos, fazem é deformar os professores,  começando por incutir-lhes uma falsa ideia de liberdade, que os leva a  romper com o mundo real para perder-se em utopias. Isso porque a  pedagogia construtivista – que manda o professor respeitar a realidade  do aluno – jamais respeita a realidade do professor. É, sobretudo,  contra essa arrogância acadêmica que o professor da escola básica deve  lutar. Ao contrário do que pensam os professores em greve, o governante  de plantão é um mal passageiro – o coronelismo acadêmico é que é um mal  permanente.
Publicado no Jornal Opção.
José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.

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