Por Nelson Rodrigues
Estava tomando
café em pé quando viu passando, na calçada, a pequena que começara a namorar na
véspera. Largou a xícara, largou tudo e atirou-se no seu encalço, quase como um
maluco. Tropeça num cavalheiro, esbarra numa senhora, e vai alcançar a menina
pouco adiante. Caminha lado a lado e faz a alegre pergunta:
- Como vai
essa figurinha?
A garota, que
era realmente linda, estaca por um segundo. Olha-o, de alto a baixo, com
surpresa e susto. Em seguida, vira o rosto e continua andando. Osmar,
desconcertado, apressa o passo e a interroga "Mas que é isso? Não me
reconheces mais?". Nenhuma resposta. E ele; num espanto misturado de
irritação: "Que máscara é essa?". Silêncio, ainda Nessa altura dos
acontecimentos, a menina só falta correr.
Então, Osmar
perde a paciência; segura o braço da fulana: "Olha aqui, Marilena "
Ao ouvir o nome, ela pára: vira-se para ele, mais cordial, quase alegre;
encara-o confiante:
- Já vi tudo!
- Tudo como?
Ela parece
aliviada.
- Eu não sou
Marilena, Marilena é minha irmã.
Pasmo,
exclama: "Meu Deus do céu! Que coisa!" A garota sorri divertida com a
confusão:
- Eu sou Iara.
Osmar faz a
pergunta desnecessária:
- E são
gêmeas?
Na véspera,
conhecera Marilena. Fora um desses flertes deliciosíssimos de ônibus. Viajaram
em pé, lado a lado, cada qual pendurado na sua argola. Quando saltaram, no
mesmo poste, era evidente que a simpatia era recíproca e irresistível. Marilena
deu-lhe telefone, endereço, tudo. Só não lhe dissera por falta de oportunidade
que tinha uma irmã gêmea, Iara. Quando se encontraram mais tarde, Osmar contou
o episódio e dramatizou:
- Sabe que eu
estou com a minha cara no chão? Besta! Semelhança espantosa! Assim nunca vi,
puxa! Como é que pode hein?
Sentaram-se
num banco de jardim. E, então, Marilena contou que o equivoco de Osmar não
seria o primeiro, nem o último. Mesmo amigos e até parentes incidiam por vezes
na mesma confusão. A única coisa que diferia entre as duas era um bracelete que
Iara usava e a outra não. Ainda na sua impressão profunda, ele observa:
- Irmãs assim,
gêmeas, são muito amigas, não são?
Marilena
parece vacilar:
- Depende.
Ele insiste:
"E vocês?". Marilena resiste:
- Você está
querendo saber muito. Vamos mudar de assunto que é melhor.
O DRAMA
Desde o primeiro momento, Osmar julgou descobrir em Marilena a índole, a vocação, o destino da esposa. Uma semana depois, avisava em casa e no emprego, em toda parte: "Vou ficar noivo! Vou me casar!". No fim de quinze dias começa a freqüentar a casa de Marilena. Mais tarde, ou seja, dois meses, e fica noivo. Os amigos batiam-lhe nas costas:
- Que rapidez,
que pressa! Bateste todos os recordes mundiais de velocidade!
Pilheriava:
- O negócio,
aqui, é a jato!
Passava todos
os seus momentos de folga na casa da noiva. E, apesar de ver as duas irmãs
diariamente, continuava fazendo o mesmo espanto: "Como é possível, meu
Deus, duas criaturas tão parecidas!". E quando saia com Marilena e Iara,
fazia de próprio o comentário jocoso: "Eu me sinto uma espécie de noivo de
duas!".
Um dia, porém, Marilena pôs-lhe a mão no braço:
- vou te pedir
um favor Não brinca mais assim. É um favor. Não brinca mais assim. É um favor
que te peço.
- Por quê?
E ela:
- Se tu
soubesses como me irrita essa semelhança' Estou cansada, farta, de ser tão
parecida com Iara! - Pausa e acrescenta, com surdo sofrimento: - Eu não queria
me parecer com ninguém! Com mulher nenhuma!
NOVO PEDIDO
Dai a dias,
Marilena faz novo pedido: "Não quero que você tenha muita intimidade com
Iara, sim?". Osmar, que achava abominável qualquer briga entre parentes,
sobretudo entre irmãos, tomou um choque. Pigarreia e indaga: "Mas vocês
não são tão amigas?". Marilena crispa-se diante dele: "Amigas, nós?
Nunca!". Pela primeira vez, admite:
- Nunca
brigamos, nunca discutimos e ela me trata até muito bem. Mas me odeia, ouviu?
Eu sei que ela me odeia!
Agarrada ao
noivo, Marilena fala do sentimento turvo e constante que não se traduz em atos,
em palavras. Explica: "Iara nunca me disse nada, nada, mas...". Osmar
pigarreia, assombrado: "Acho que você está exagerando!". Fosse como
fosse, ele procurou, com o máximo de tato, discrição, afastar-se da cunhada.
Mas não conseguia acreditar que Iara, tão cordial com todos e amorosíssima com
Marilena, pudesse odiar alguém e muito menos a irmã. Por essa época, Iara
apanhou uma gripe muito forte, quase uma pneumonia, venceu a crise, é certo;
mas sua convalescença constituiu um novo problema. Depauperada, numa tristeza
continua que a calava, só falava em morrer. O médico da família coça a cabeça:
"Esgotamento. O golpe é ir para fora". O casamento de Marilena estava
marcado para próximo. A mãe pergunta: "Não assiste ao casamento?".
Iara responde:
- Não se
incomode, mamãe, que eu não vou fazer falta. E se eu ficar aqui não sei, não;
acho que vou acabar fazendo uma bobagem!
A família não
teve outro remédio senão mandá-la pata a fazenda de um tio em Mato Grosso.
Muito enfraquecida, Iara suspirou:
- Ótimo que
seja em Mato Grosso. Quanto mais longe melhor.
BODAS
Quando o avião
que a levava partiu, Marilena vira-se para o noivo: "Graças, meu Deus,
graças!". Essa alegria pareceu a Osmar cruel, quase cínica. Era, porém,
evidente que a ausência da outra a fazia felicíssima: "Agora, sim",
dizia, "agora eu sei que não me acontecerá nada!". E, de fato, um mês
depois casavam-se no civil e no religioso. Como presente de casamento, haviam
ganho uma pequena casa, lírica e nupcial, em Lins de Vasconcelos. Ás dez horas
da noite, deixam a casa dos pais da noiva e vão para a nova residência. Estão
solitários como Adão e Eva. Ela, transfigurada, avisa: "Depois te
chamo!". Entra no quarto e, ainda de noiva, fecha a porta atrás de si. Do
lado de fora, ele espera, fumando, impaciente. Quinze minutos depois, bate. De
dentro, vem a resposta: "Já vai". Mais quinze minutos e Marilena
entreabre: "Pode vir, meu bem". Horas depois, quando já amanhecia,
ele, no seu deslumbramento, passa a mão no braço da pequena. Súbito, senta-se
na cama. Balbucia, apavorado: "O bracelete!". Ela responde, muito doce:
- Eu não sou
Marilena, eu sou Iara.
Fora de si,
ele se levanta, procura debaixo da cama, dos móveis; derruba uma cadeira; e, no
meio do quarto, olha em torno, sem compreender. Então, Iara aponta:
"Ali!". Como um louco, ele corre ao guarda-vestidos; num uivo abre as
duas portas. Mas recua, numa histeria pavorosa. Lá de dentro, vem sobre ele o
cadáver de Marilena, vestido de noiva. Na cama, Iara está acendendo um cigarro
americano.