Quem quiser se divertir no cinema não vá ver os filmes de Lars von
Trier. Mas quem quiser discutir antropologia filosófica e a questão do
mal no mundo é lá que deve ir. A coragem artística do diretor norueguês
não tem limite. Sua habilidade com a câmara é digna de um Kubrick. Penso
que ele fez (faz) a mais correta e completa crônica de nossos tempos, a
fisiologia da alma nesse maldito século XXI. Não por acaso nos filmes a
questão psicológica (e psiquiátrica) tem relevo. Psiquiatria: ciência
da alma.
Digo isso porque venho de ver quatro peças do diretor. Sim, aguentei
por dias seguidos o mergulho no mal, por Lars von Trier. Fico imaginando
o custo psicológico de escrever e dirigir esses roteiros alucinantes. É
extenuante. Comecei no Dogville (2003), essa afirmação exaltada da
visão agostiniana do mal. Depois Manderlay (2005), sua continuação. Em
seguida o Anticristo (2009) e Melancolia (2011). Iria ver outros antes
de tecer estes comentários, mas me dei por satisfeito. O diretor varia a
história, mas não varia o tema. É sempre o Mal na tela grande, visto
com requintes filosóficos.
Dogville, que tem no elenco a fantástica Nicole Kidman, é um ensaio
antropológico que reproduz a visão de Santo Agostinho sobre o mal. A
bela mulher que chega desamparada a uma pequena povoação, num ermo, um
fim de mundo. A convivência vai revelar a verdadeira natureza humana,
que escraviza, que esmaga o outro (a garota nem é fraca e nem
desamparada, foge de outro mal, o da posse do poder), que explora, que
pratica gratuitamente o mal. De crianças a velhos. Mulheres e homens.
Estes a forçam ao sexo, estupram, humilham. Elas a submetem, humilham,
negam a sua liberdade. No final, todos merecem morrer, pois todos são
culpados, lembrando a visão de Santo Agostinho sobre os acontecidos na
invasão dos bárbaros sobre Roma. Não há justo onde habitam os homens. É a
mais sensacional representação cinematográfica sobre o tema que já vi.
Por ambientar a história nos EUA dos anos 30 Lars von Trier foi
hostilizado por seu suposto antiamericanismo. Uma tolice imensa. O filme
poderia ter sido rodado no sertão do Cabrobó e faria todo sentido. O
tema é universal.
Aqui é uma visão radicalmente oposta a de Rousseau sobre o mal. O
genebrino ensinou que o homem nasce bom e é a sociedade que o corrompe.
Lars von Trier desmente esse conto de fadas falsificado. O homem é mau
porque nasce mau. Pensar em contrário é falsa ciência, que leva a
conclusões e ações erradas. Toda a ciência política que se pratica desde
o século XIX usa dessa falsificação para alicerçar as utopias
transformistas e perfectibilizadoras do homem. Deu no que deu, nos
genocídios. Nos fornos crematórios.
Manderlay é sua continuação, agora tratando do tema da escravidão.
Não é um filme tão brilhante, pois não se sabe se o autor, de fato,
endossa a tese de que há uma hierarquia natural. O tema da escravidão é
de difícil abordagem. Eu penso que Lars von Trier defende alguma coisa
próxima de Aristóteles sobre o tema, mas o resultado final demonstra
muita hesitação. Destaque para o ator Danny Glover. A atriz principal
agora é Grace Margaret Mulligan.
O filme O Anticristo é uma obra prima . Desde o título, estilizado
com o símbolo feminino de Vênus, vemos que o mergulho no mal aqui é
feito em escala bíblica. A música de Handel, cantada por Cecília Bartoli, é espetáculo à parte (Deixa-me chorar – Lascio ch’io pianga) dá
o tom dramático do desespero de uma madona depois do sacrifício. O ato
sexual cru, brutal, explícito da abertura mostra que o diretor não faria
rodeios. O drama da alma começa no drama do sexo, da reprodução, que é
natureza que devora. Que é feminino. A mulher, levada ao desespero, faz a
excisão do clitóris, depois de castrar o homem. Tentativa desesperada
de se libertar. Mas é ela mesma que põe uma mó nos pés do homem, para
subjuga-lo. Para tomar a sua liberdade. O homem é seu reprodutor.
Natureza é o outro nome do mal. As cenas são fortíssimas. A atriz
Charlotte Gainsbourg dá vida à personagem principal, com esmero.
Willian Dafoe, ator de quem não gosto muito, mas Lars von Trier o pôs em
todos os filmes, faz a sua parte.
É um filme duro, cruel, que comunga com a ideia da maldade inerente a
esse mundo cão que vivemos, à condição humana. Tudo que tem no filme
está nos jornais do dia e o femicídio tem sido prática frequente por
aqui. Uma debalde tentativa de rebelião do masculino contra o feminino?
Uma fuga impossível da condição imposta pelo mal? Os jornais não nos
permitem esquecer o mal cotidiano. É um filme verdadeiro, que não
esconde a realidade das coisas. O sexo explícito é integrante dessa
condição natural, sublinhada pela gazela em trabalho de parto de um
aborto. As mães sempre dão à luz filhos para a morte. O anticristo é a
natureza, é o feminino. A natureza é feminina, cria, procria. Esse ponto
de vista é assustador, mas é tudo como está no Gênese, em Adão e Eva.
O cenário onde o epílogo acontece é justamente um sítio chamado de
Éden. Eis o Éden da natureza. Evidentemente os ambientalistas mais
radicais não perceberam a dureza da crítica a eles dirigida.
As referências astrológicas são múltiplas. O trinômio dor, luto e
desespero ligado a uma fictícia constelação dos Três Mendigos, em cujo
trânsito se dão os acontecimentos. O homem racional, que descrê na
psiquiatria, é envolvido na trama desesperada da mulher no cio,
provocado pelo desespero da perda trágica do filho. Quer engravidar a
todo custo. O menino morto, que sempre era vestido com sapados com pés
trocados, faz uma referência ao Cujo, aquele que é aleijado. O filme tem
manancial inesgotável de símbolos.
Outro animal que está em destaque é o corvo, que estranhamente, vivo,
está semienterrado na caverna e denuncia o homem que foge da mulher
tomada por fogo sensual alucinado. O corvo é o animal totêmico de satã,
outra acabada representação simbólica do mal.
Por fim, o filme Melancolia. Uma trágica representação do mal que
emerge irresistível do interior do ser, não está relacionado a fatos
externos. No céu surge esplêndida a constelação de Escorpião, residência
de Plutão, o pai e a mãe de todas as depressões. A estrela Antares
brilha. A história de duas irmãs, uma se casando. No dia supostamente
mais feliz de uma mulher ela vai se entristecendo e no limite da
tristeza, rejeita o casamento e faz amor com um desconhecido, humilhando
o agora marido, depois de larga-lo no leito nupcial, à vista de toda
gente.
Depois a própria irmã também entra em paranoia e todos da casa
enxergam que um planeta está para se chocar contra a terra. Uma imagem
alucinante, sobretudo para mim, que certa vez tive uma sequência de
sonhos nos quais a lua desabava sobre a terra. O filme acaba com a
colisão entre os astros, que bem pode ser compreendida como o mergulho
na loucura.
Quer entender a obra de Lars von Trier? Leia Santo Agostinho. E
Nietzsche. E Rousseau, esse louco que enlouqueceu a humanidade com suas
mentiras filosóficas sobre o homem.
Por Nivaldo Cordeiro
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