No inverno de 1077, o imperador Henrique IV fez a peregrinação a
Canossa, curvando-se perante o papa Gregório VII, que o excomungara.
Quase um milênio depois, Lula conheceu a sua Canossa, peregrinando com
Fernando Haddad a tiracolo até o jardim da mansão de Paulo Maluf, que
expôs publicamente sua troca de afagos com a dupla petista. O cargo
federal entregue por Dilma Rousseff a um protegido de Maluf não foi o
preço, mas apenas a parcela de superfaturamento cobrada pelo minuto e
meio de tempo de TV que o PP vendeu ao candidato lulista à Prefeitura de
São Paulo. Conhecedor do valor das obsessões, Maluf impôs a Lula a
quitação da dívida por um gesto de humilhação maior que o experimentado
pelo soberano do Sacro Império: o papa, afinal, dispunha de poder
incomparavelmente superior ao do fugitivo da Interpol.
Luiza Erundina suportaria a aliança com o PP, mas não tolerou a
"forma" - a simbologia - que cercou o compromisso. Ela se retirou da
chapa à Prefeitura e acusou Lula de uma traição "a princípios". É um
recurso de autoilusão, tão patético quanto suas declarações anteriores,
que invocavam a "luta pelo socialismo" para justificar sua parceria com
Haddad. O "princípio" exclusivo de Lula são os interesses de seu sistema
de poder. O lulismo já celebrou Jader Barbalho, José Sarney e Fernando
Collor: o congraçamento com Maluf se inscreve numa linha de coerência e
só pode surpreender observadores que se ausentaram do planeta durante a
última década.
Antonio Donato, coordenador da campanha de Haddad, reagiu ao episódio
criticando uma suposta incoerência de Erundina, não de Lula: "Quem quer
mudar o Brasil se preocupa com o conteúdo, e não com a forma". O seu
"realismo", difundido entre os dirigentes petistas, vai muito além do
"realismo" de José Serra, que queria a aliança com o PP (e se aliou com
Valdemar Costa Neto, o réu do mensalão que comanda o PR), mas não se
sujeitou à exigência de avalizar publicamente a figura de Maluf. Donato
está dizendo que a Canossa de Lula vale a pena, se contribui em algo
para um projeto de poder já esvaziado de qualquer sentido substantivo de
mudança.
Todo o incidente seria apenas tedioso, não fosse a circunstância de
que Erundina ficou só no seu protesto quixotesco. Os intelectuais de
esquerda que apoiam Haddad não ergueram a voz para questionar, analisar
ou explicar o gesto de Lula. Nos dias seguintes à humilhação do jardim,
descortinou-se um resultado de dez anos de poder lulista: a morte da
crítica de esquerda.
Antonio Cândido, Gabriel Cohn e Eugênio Bucci preferiram nada
declarar. Mario Sergio Cortella sugeriu "tocar em frente", após uma
"fase de reflexão", mas não ofereceu nenhuma "reflexão". Paul Singer
justificou o silêncio como um dever político: "Não tenho interesse em
tornar pública qualquer opinião. Vai ficar entre mim e mim mesmo".
Marilena Chauí optou por emular o antigo ministro da Justiça da
ditadura, Armando Falcão, cujo célebre "nada a declarar" veiculava seu
rancor contra a imprensa: "Não vou dar entrevista, meu bem. Não acho
nada. Nadinha. Até logo".
Ouvi, informalmente, de uma das "intelectuais tucanas" que se
converteram aos encantos da candidatura de Haddad, uma versão da
justificativa medíocre posta em circulação por dirigentes petistas:
"Maluf por Maluf, Serra também queria". Emir Sader, que dubla como
intelectual, mas opera, efetivamente, como militante, expressou o
sentido pragmático do denso silêncio geral: "O fundamental é derrotar a
'tucanalha' em São Paulo. Eu posso gostar ou não do Maluf, mas vou fazer
campanha para o Haddad do mesmo jeito".
Não é verdade que os intelectuais de esquerda jamais criticaram Lula
ou o PT. A crítica existia, pública e intensa, antes da chegada de Lula
ao Planalto. Continuou depois, até o "mensalão", um pouco mais amena,
dirigida contra a escolha de José Alencar para a vice-presidência e as
"políticas mercadistas" de Henrique Meirelles no Banco Central. Os
intelectuais de esquerda justificaram sua adesão ao governo Lula sob a
premissa de que, aos poucos, o lulismo se moveria para a esquerda,
rompendo a teia de "alianças pragmáticas" indispensáveis no início do
"processo". A profecia não se cumpriu - e, ao contrário, o lulismo se
identificou cada vez mais com os aliados conservadores. A crítica,
contudo, experimentou progressiva rarefação, até desaparecer.
Quanto mais o lulismo se adapta à ordem tradicional, menos é
criticado pelos intelectuais de esquerda. A equação, superficialmente
paradoxal, solicita explicação. Uma sedutora hipótese de solução é
imaginar que tais intelectuais estão imbuídos pelo nobre sentimento de
"patriotismo partidário". Instado a se subordinar às decisões de um
partido comunista que transitava para o controle de Stalin, o dissidente
Trotsky invocou a marcha da História rumo ao Futuro: "Certo ou errado, é
o meu Partido. Não se pode ter razão contra o Partido ou fora dele".
Singer quase repetiu Trotsky - e deve ter pensado na frase do
revolucionário russo ao pronunciar a sua, destituída de cores épicas.
A hipótese, porém, não tem sustentação lógica ou histórica. Trotsky
não era um intelectual acadêmico, mas um dirigente bolchevique. Na
Rússia, desenrolava-se uma revolução social na moldura da crise geral
europeia aberta pela Grande Guerra, não uma eleição municipal no quadro
da democracia. A explicação prosaica para a renúncia à crítica é que os
intelectuais de esquerda brasileiros encontraram seus lugares à sombra
da frondosa árvore do poder lulista. Eles se acostumaram com os
benefícios profissionais e, sobretudo, com as "rendas de prestígio"
auferidas pela proximidade do governo. No terceiro mandato lulista, e
diante da perspectiva de um quarto, interiorizaram como hábitos as
normas de elogiar os poderosos e sustar, na hora certa, a inclinação à
crítica. A evidência disso é obra de Maluf.
Por Demétrio Magnoli